Ponto de Vista

Três homens trabalhavam numa pedreira.

Um deles reclamava sempre, o outro era indiferente;
o terceiro trabalhava alegre com afinco.

Certa vez perguntaram-lhes o que faziam:
—quebro pedras, cuspiu o primeiro;
—carrego blocos para pagar as contas, mastigou o outro;
—estou construindo catedrais, sorriu o terceiro!

Adaptação de história de domínio público, Copyright©2010 Maria Brockerhoff

Preciosa — o filme!

O diretor e autora do livro formaram uma parceria de talentos. Ambos transformaram o sofrimento de suas vidas em arte e catarse! Deve ser visto.

De Philadelphia (USA), Lee Daniels teve uma infância duríssima. O violento pai policial jamais aceitou a homossexualidade do filho. Inteligente e sensível, o jovem superou inúmeros obstáculos. Tornou-se competente diretor ou produtor de outros bons filmes: A Última Ceia (2001), O Lenhador (2004), Os Matadores de Aluguel (2005), Tennessee (2008) e O Mordomo da Casa Branca (2013).

PF2500Lee Daniels sempre considerou o cinema europeu intrigante e detesta, em geral, o cinema americano. Não pensa em fazer filmes para as massas. O objetivo, para ele, é levar o espectador à reflexão. Especialmente quanto ao Preciosa (2009), revelou: “retrata o meu mundo, é uma tentativa de cicatrizar as feridas deixadas pela conduta abusiva do meu pai.

Oprah Winfrey, coprodutora, revela a aprovação cheia de entusiasmo ao exclamar, na estréia:

It was primal! Wow!

PF1500Gabourey Sidibe — a excelente atriz principal — foi escolhida entre 500 candidatas. Foi o primeiro filme e até o dia anterior era estudante de psicologia e recepcionista.

A comediante Mo’Nique, também com uma parcela de abusos na infância, interpreta muito bem a mãe, cúmplice nos tormentos familiares.

O filme foi baseado no livro Push de Ramona Lofton, nascida na Califórnia; retrata alguns traços autobiográficos e o comum na vida de muitas filhas. Ramona passou a se chamar Sapphire e mora em Nova York.

A autora Sapphire foi professora por sete anos numa escola alternativa no Harlem, tal como no filme. Essa experiência torna o filme ainda mais duro e desnuda um submundo no qual mulheres vegetam sem ao menos saber que são pessoas. Perversamente a situação é quase sempre alimentada por outras mulheres.

O filme Preciosa — irônica provocação de ser este o nome do meio da protagonista “Claireece Precious Jones” — é uma intrigante mistura de feiura, violência, redenção e esperança.

A princípio, Preciosa não conseguia formular uma frase com sujeito e verbo, nem mesmo no dialeto do Harlem. Aí, o talentoso diretor Lee Daniels segue as pegadas magistrais de Sapphire ao mostrar o lento e significativo progresso da fala de Preciosa: a fase do balbucio equivale ao não-ser; ao elaborar frases, torna-se pessoa.

É uma transformação de dentro para fora e tornou-se possível quando, através dos rudimentos da escrita, algumas meninas percebem uma fresta dentro de si mesmas. Com a ajuda imprescindível e paciente da dedicada professora — interpretada por Paula Patton — Preciosa começa a descobrir, contra todas as expectativas, forças para buscar outro caminho.

O filme escancara as relações familiares nos moldes estabelecidos desde sempre. Não há, praticamente, homens; é um universo de mulheres onde se revela a crueldade dos adultos. A exposição da comunidade do Harlem, que Sapphire conheceu bem, é o retrato da hipocrisia familiar, do mito da inata disposição materna, da ignorância absoluta dos deveres paternos.

Aplicável ao quotidiano a explicação da professora para as suas alunas:

esta escola [a armadilha familiar, dizem as Erínias] é uma porta giratória, umas conseguem sair… outras não…

Doris Lessing

Sou assaltante de livros: se a vítima está nas mãos de um amigo sem tempo para ler ou aguardando o próximo final de semana para isso, zás! tomo-o de assalto e cumpro o prometido, devolvo o volume encapadinho dois dias depois.

O último butim foi As Avós de Doris Lessing, inglesa, nascida na antiga Pérsia, de 91 anos.

O livrinho (os autores devem se arrepiar com o diminutivo) somente pelo volume bem fino, é instigante, profundo. Descreve um invejável estado de felicidade e a solução amorosa dos amantes incomuns.

Mostra, com maestria, o emaranhado das relações humanas, assim como quem não quer nada… sem lições… sem propósitos… Lessing se dá ao luxo de, às vezes, deixar no ar frases do diálogo!

Do assunto “avós” passa longe. Li, reli. Ao terminar voltava ao início consecutivamente.

A cada leitura um novo ângulo, um outro lado do personagem, uma faceta não apreendida…

Quem já aprendeu a ler subtextos enxerga a interpretação que Lessing dá ao esquecido adágio “os incomodados que se mudem”. É que, nos triângulos desamorosos, quando a pessoa tem a sensacão de não pertencer ao grupo, à tribo, ao mundo do parceiro e não sente ter importância naquele ninho, se tiver auto-estima, bate em retirada! Irá buscar o seu lugar afetivo longe dali, sem exigências, sem “indenizações”.
Se, ao contrário, for ressentida e invejosa tentará destruir o parceiro, o grupo, a tribo… não importam as feridas, os golpes, ainda que na própria pele… Lessing demonstra, com lucidez, estas duas escolhas.

Este é apenas um dos insights que o livro provoca… há muitos outros… descubra-os!

Jean-Yves Leloup

…é maravilhoso da cabeça aos pés! Dá gosto ler e ver…

No livro O Corpo e Seus Símbolos (a edição poderia ser bem melhor; a revisão também; o conteúdo valioso merece maiores cuidados), Leloup diz:

há palavras que permanecem presas em nossa garganta e nos impedem de respirar […] pode ser uma palavra de reprovação, de medo, mas pode ser também uma palavra de amor. […] O papel da psicanálise é encontrar a palavra e o jeito de dizer essa palavra. […] E o papel do terapeuta é o de convidar a pessoa a deixar sua palavra nascer. Não a palavra dos pais, não a palavra da sociedade, não a palavra herdada de todo um passado, não repetições, mas encontrar […] o seu próprio nome. E conhecer, então, o próprio desejo.

Para isso

[…] precisamos sair do desejo de nosso pai, do desejo de nossa mãe. […] do desejo proposto pela sociedade. […] é preciso sair das palavras que aprendemos, das palavras que nos impuseram. Às vezes, é apenas um sussurro que nasce em nós. Não é um rio caudaloso […] mas é como um pequeno regato de águas límpidas.

Oscar Wilde

escritor irlandês (1854-1900), adorável; a obra mais conhecida é O Retrato de Doryan Gray; a vida deste carinha incomparável teve a rapidez e a intensidade de um relâmpago; a sensibilidade de Wilde é visceral; O Rouxinol e a Rosa é um conto inesquecível!

O humor de Wilde é delicioso:

Os jovens costumam considerar que o dinheiro é tudo; quando ficam mais velhos podem comprovar isso!

Certas criaturas têm a mania de dar conselhos precisando tantos para si; isto é que chamo de excesso de generosidade.

Só os que perderam a cabeça sabem raciocinar.

Quem, sendo amado, é pobre?

Olho por olho…

Engolir o sapo ou a justiça estrita do dente-por-dente? Nas irônicas circunstâncias desta história, o grande escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), em O Idiotaaponta a saída…

…estou sòzinho no vagão. Fumar não é proibido mas também não é permitido; ou seja, é semipermitido, como de costume; e isso dependendo da pessoa. A janela está aberta. De repente, instalam-se duas damas com um totó, bem à minha frente; chegaram atrasadas; uma estava vestida de forma mais elegante, de azul claro; a outra, mais simples. Eu sou bem apessoado, elas olham com desdém, falam inglês. Eu, é claro, não ligo; continuo fumando para fora da janela. O totó está no colo da senhora de azul claro, é pequeno, cabe na minha mão, preto, patinhas brancas, até uma raridade. Coleira de prata com uns dizeres. Eu não ligo. Observo apenas que as damas, parece, estão zangadas com o charuto, é claro. Uma aponta para mim o lornhão, de osso de tartaruga. Não falam nada mesmo! Se avisassem, se pedissem, porque para isso existe finalmente a linguagem humana! No entanto, se calam […] Sem o mais mínimo aviso, todavia como se tivesse ficado totalmente louca, a de azul claro me arranca da mão o charuto e o joga pela janela. O trem voa, fico olhando como um louco. Uma mulher selvagem; selvagem mulher, os olhos brilham na minha direção, e eu, sem dizer palavra e com uma gentileza incomum, com a mais perfeita gentileza, gentileza refinada, por assim dizer, aproximo dois dedos do totó, pego-o delicadamente pela nuca e o arremesso janela afora atrás do charuto! Ele dá apenas um ganido! O trem continua voando…

Por do Sol

É, por definição, indescritível.

Podemos falar das batidas aceleradas do coração,
da perplexidade diante daqueles raios coloridos tirando-nos o folêgo.

A despedida de hoje foi, mais uma vez, surpreendente e
quem teve a sorte grande de estar na platéia
pôde guardar este por de sol na retina e trazê-lo de volta…
para iluminar um momento escuro.

Urtiga: o Outro Lado da Folha

É sinônimo de queimação; da pobre urtiga (Urtica dioica) brotam os dolorosos derivados urticar, urticação, pois contém ácido fórmico e suas enzimas são parecidas com o veneno de cobra… mas é rica em vitamina C, ferro e magnésio; é diurética e antidiarréica, cura as infecções da boca e as aftas. Além de bonita, a urtiga é boa companheira para outras plantas, protegendo-as de predadores e atraindo insetos úteis.

Claro, as suas folhas devem ser manipulados com cuidado, pois podem irritar severamente a pele. Contudo, seu valor nutritivo equivale ao do espinafre e uma sopa de urtigas com batatas enriquece qualquer refeição.

A urtiga é uma erva ótima para a pele e os cabelos, combatendo eficazmente a caspa; um chá bem forte na água do banho deixa a pele macia e estimula a circulação. A máscara de urtiga rejunevesce e clareia a pele. Extratos podem ser usados para tratar artrite e anemia.

Curiosamente, algumas tribos usavam a planta como anestésico antes de cirurgias ou para aliviar a dor. Na Escandinávia, serve para fazer linha; na Sibéria, para papel e óleo. No Nepal e no norte da Índia é muito popular na cozinha combinada com temperos indianos. Na Europa, o extrato de urtiga é um ingrediente em vários doces, xaropes e licores.

No mundo mágico, as folhas atiradas ao fogo afastam os perigos e são poderosas como amuleto. Uma crença muito antiga diz que um ramo de urtiga debaixo da cama faz com que o paciente se recupere mais depressa.

Também as plantas nos ensinam: quem só enxerga espinhos não aproveita do coração!

Fontes: “As Plantas do Sítio” de Rosy Bornhausen (1995), Словари и энциклопедии на Академике (foto), Encyclopedia of Organic Gardening (2005).

Luis Fernando Veríssimo

Ver!issimo (Comédias Brasileiras de Verão)

Nestas linhas, o nosso mais bem humorado escritor ( o bom humor é sinal explícito de inteligência!) se esmera e vai fundo na carência das relações humanas:

O mistério

Ou como dizia aquele samba do Nelson Sargento, numa adaptação livre:

Nosso amor é bonito.

Ela finge que me ama e que todos os seus orgasmos são múltiplos, espasmódicos, gloriosos, com fogos de artíficio, revoada de pombos e a orquestra dos Fuzileiros Navais em uniforme de gala.

E eu finjo que acredito.

Impressões de Viagem: China

As Erínias perambularam por alguns lugares na China.

Os conceitos e os pre- são todos revirados; aliás, isto é um dos bons resultados de viagens.

O primeiro susto, nas cidades chinesas, é o trânsito. Não se percebem regras, leis de trânsito estabelecidas, mas… não se vêem acidentes: bicicletas, carrinhos improvisados (muitos elétricos), motos, lambretas (também elétricas), pedestres, carros, ônibus e caminhões trafegam em todas as direções, em velocidade moderada.

Aconteceu haver seis carros na pista, inclusive nos acostamentos e na contramão, todos no mesmo sentido. A buzina funciona simplesmente como um aviso: “estou entrando”. Não se ouvem xingatórios nem freadas bruscas. Há sinais, sim, nas autopistas para que se use a buzina nas curvas (!).

Já no segundo dia parece haver uma lógica neste caos: cada um pode fazer como lhe convier sem reclamações mútuas (isto é o mais surpreendente); assim, não havendo outras regras pré-estabelecidas, cada motorista/pedestre se cuida e/ou recua quando o outro for mais potente ou mais rápido.

É comum o motorista dar ré, fazer conversão, ou mesmo parar por qualquer motivo em plena avenida ou rodovia, sem espanto dos nativos. Em determinado trecho, havia um rebanho de ovelhas e os motoristas saíram dos veículos para organizar a passagem do bando; todos esperaram o fim das manobras, aguardando a vez.

A conclusão possível é que, por aqui “neste país”, os acidentes são provocados pelos motoristas desobedientes aos sinais e à convenção de trânsito; espera-se, por exemplo, que a ultrapassagem seja feita pela esquerda e/ou em determinados pontos. Quando alguém quebra esta regra, a possibilidade de acidente é grande. Lá na China, como regra geral, vale a passagem possível, onde couber, em qualquer direção, sem motoristas raivosos. Ah! Os pedestres são bem espertos.

Parece que os chineses compensam no trânsito a liberdade que lhes falta; assim, não há sentido preferencial; cada um busca, literalmente, uma saída criativa.

O requinte encontra-se em Wu Tai Shan, uma cidadezinha nas montanhas, onde os 149 templos/pagodes de variados estilos dão um toque especial e são bem cuidados pelos monges residentes: os ônibus, gentilmente, param para o turista em qualquer lugar. Todos os passageiros nos cumprimentam e sorriem… ou para nós ou de nós. 🙂