3 de Abril

Lago dos Quatro Cantões, Suíça – Copyright©2018 Rainer Brockerhoff
Lago dos Quatro Cantões, Suíça – Copyright©2018 Rainer Brockerhoff

…vai fundo
o significado da despedida
não mais volta
nem ida
ao por do sol.

Delineia-se altivo
o definitivo
o fim da linha

Copyright©2024 Maria Brockerhoff

Águas de Setembro

O vento vira tudo
é o primeiro sinal
do redemoinho.

Cai água pesada
ousada
em fios grossos limpos
entupindo a razão
a boca — e terra — de lobos.

Um mar
fora de lugar.
A corrente luta
perde a disputa
para os restos
humanos nas ruas.

Todos os anos
a selva urbana é surda
tirana
a cada verão
enchentes
pânico
perdas.

Longe bem longe
a chuva é um presente
brinca em rodopios
enche cisternas
alimenta os rios
dá frescor à terra ardente
deixa o outono lavado
dentro e fora da gente.

Fica o terreiro inchado
ansioso
por nova semeadura…

Copyright©Maria Brockerhoff

Hauui An, Vietnam - Copyright©2009 Rainer Brockerhoff
Hauui An, Vietnam – Copyright©2009 Rainer Brockerhoff

Domingo de Maio

Porto de Buenos Aires – Copyright©2006 Rainer Brockerhoff

…no livro da vida
as páginas do tempo nos aguardam
cheias de mistérios.

As páginas e o tempo
estão disponíveis
para os desejos
à espera
de impulsos
da ousadia de transgredir
da capacidade de ultrapassar.

As páginas
assim como todos os dias
serão preenchidos com seiva
lágrimas suor força…
cada um de nós usará a tinta das veias
para colorir umas e
outros…

Copyright©2001 Maria Brockerhoff

Fim de Linha

a gente quer segurar o passado
a surpresa da sintonia
os volteados da dança

as corridas na areia
os olhares sem palavras
os encontros completos

engano puro
o passado é lacrado
o afeto ficou
     distante
     vencido

hoje a conversa é caricatura
as lembranças distorcidas
machucam o presente

hoje temos nada
inútil buscar os laços
     lá longe

deixemos assim
as lembranças permanecem.
Agora entre nós somos ninguém…

Copyright©2022 Maria Brockerhoff

Copyright©2018 Rainer Brockerhoff

Música, divina Música — Millôr

Copyright©2012 Wen Wei Sum (Creative Commons)

Tanto duvidaram dele, da teoria daquele jovem gênio musical, que ele resolveu provar pra si mesmo, empiricamente, a teoria de que não existem animais selvagens. Que os animais são tão ou mais sensíveis do que os seres humanos. E que são sensíveis sobretudo ao envolvimento da música, quando esta é competentemente interpretada.

Por isso, uma noite, esgueirou-se sozinho pra dentro do Jardim Zoológico da cidade e, silenciosamente, se aproximou da jaula dos orangotangos. Começou a tocar baixinho, bem suave, a sua magnífica flauta doce, ao mesmo tempo em que abria a porta da jaula. Os macacões quase que não pestanejaram. Se moveram devagarinho, fascinados, apenas pra se aproximar mais do músico e do som.

O músico continuou as volutas de sua fantasia musical enquanto abria a jaula dos leões. Os leões, também hipnotizados, foram saindo, pé ante pé, com o respeito que só têm os grandes aficionados da música. E assim a flauta continuou soando no meio da noite, mágica e sedutora, enquanto o gênio ia abrindo jaula após jaula e os animais o acompanhavam, definitivamente seduzidos, como ele previra.

Uma lua enorme, de prata e ouro, iluminava os jacarés, elefantes, cobras, onças, tudo quanto é animal de Deus ali reunido, envolvidos na sinfonia improvisada no meio das árvores. Até que o músico, sempre tocando, abriu a última jaula do último animal – um tigre.

Que, mal viu a porta aberta, saltou sobre ele, engolindo músico e música – e flauta doce de quebra. Os bichos todos deram um oh! de consternação. A onça, chocada, exprimiu o espanto e a revolta de todos:

– Mas, tigre, era um músico estupendo, uma música sublime! Por que você fez isso? E o tigre, colocando as patas em concha nas orelhas, perguntou: 
– Ahn? O quê, o quê? Fala mais alto, pô!

MORAL: OS ANIMAIS TAMBÉM TÊM DEFICIÊNCIAS HUMANAS.

Millôr Fernandes, autodidata, é um dos maiores jornalistas e chargistas da imprensa brasileira, século XX.
Carioca do Méier, Milton Viola Fernandes foi registrado como Millôr devido a uma dúvida na caligrafia. Na revista O Cruzeiro publicava sob o pseudônimo Vão Gôgo! Inteligentíssimo, como o demonstra o seu senso de humor.
A vastíssima escrita de Millôr é atemporal, como toda obra-prima.

2021 Delivery

Painel ©Copyright Isidoro Esposito
fotografado em Rossano, Itália 2018 – Rainer Brockerhoff

Neste mundo à mingua
de silêncio e
abarrotado de whatsapp,
os rabiscos de pedidos.
Entrega imediata:
— calma
para estar no presente
— o toque
de despertar nas fibras do peito
— a surpresa
de rever o mar como na primeira vez
— abraços
inteiros de corpos ensaboados
com cravo e canela…

PS …e a sua lista?

Copyright©2020 Maria Brockerhoff

Especial para Advogados

Uma Decisão de Peito

Estou acanhado, nem sei por onde pegar este assunto sucinto:
um solerte advogado, possivelmente de pasta preta, não sei, indo ao Forum da Justiça Federal no Rio para cuidar de processos, topou pela frente com determinada funcionária, cujos seios saltavam aos olhos.

Faço aqui um parêntese: vejam como a língua brasileira é safada. Quando escrevo que os seios saltavam aos olhos quero dizer os olhos é que pularam para os seios, visto que estes não saltam, pois a natureza os fez presos e seguros. Ao mesmo tempo, quero significar que os seios eram vistosos.

Entendido?
Fechar o parêntese.

Que faz o advogado? Em vez de requerer em juízo a juntada aos autos, conforme determina a boa processualística, quis fazer justiça pelas próprias mãos e agarrou-os (os seios), presa de incontida emoção, num arroubo que, francamente, só se entende perante jurados.

Não sei como qualificar o gesto.
Atentado violento ao pudor?
Apropriação indébita?
Tentativa de seqüestro?

Sei apenas que a funcionária, embora pública, teve bons motivos privados para protestar, e o fez, numa representação ao diretor do Forum.

Formou-se o processo, e imagino sua finura. Deve ter dado um romance, este opinando assim, aquele opinando assado, um outro pedindo que se ouvissem as testemunhas; enfim, essas coisas todas que a justiça é obrigada a suportar todos os dias.

Corria a coisa na órbita federal, até que os seios foram parar nas mãos do Tribunal Federal de Recursos, que não sabia onde botar aquilo. Reúnem-se os juízes, atarantados. Mexe daqui, mexe de lá, verifica-se que não há jurisprudência firmada sobre o assunto.

O que faz o Tribunal? Lava as mãos, sob a alegação de que a Justiça Comum é que deve cuidar do caso — da mesma forma como trataria, digamos, dos seios de uma comerciária, de uma fazendeira, de uma operária.

O entendimento do Tribunal Federal de Recursos é bastante claro:

“Quem se descontrola perante a beleza estética de uma funcionária pública federal e lhe agarra os seios não comete nenhum crime que deva ser apurado pela Justiça Federal, mas sim pela Justiça Comum dos Estados. Os seios da funcionária não são próprios da administração pública, nem quem os toca comete uma infração ao exercício normal da função.”

Decisão exemplar.

Vejam bem que não se trata aqui de permitir aos advogados o descontrole perante a beleza estética, isso não, pois haveria uma corrida aos cursos jurídicos, que já abundam, em busca de tão esdrúxulo privilégio. Amanhã estaria a enorme população de beca e capelo trocando os pés pelas mãos.

Em absoluto. Continua terminantemente proibido bulir nos seios no recinto do Forum, dentro ou fora do expediente. Este é o ponto que deve ficar bem claro: os infratores serão julgados pela Justiça Comum.

De outra parte, fica-se sabendo que não há seios federais.
Todos os seios são estaduais. E não são próprios da administração.

Cada funcionária deve, pois, administrar o que lhe pertence de direito. De resto, os seios não são públicos; antes, estão subordinados à iniciativa privada, que se encarregará de resguardá-los e defendê-los na medida das necessidades.
Que cada um saiba, pois, onde os deixa e onde bota a mão.

O Tribunal Federal de Recursos manifestou-se com sensatez. Provou, mais uma vez, que a Justiça é mulher experiente e de peito. O erro foi do advogado: acreditou naquela história de que a Justiça é cega.
No Forum, tudo se sabe, doutor.

Crónica de Lourenço Diaféria, 11/1976,
coletada em “Circo dos Cavalões”.