Zimbabwe — Victoria Falls

O vôo de Johannesburgo a Victoria Falls é de 90 minutos. O desembarque na pequena cidade das cataratas é um refinado exercício de burocracia, durando quase o mesmo tempo do vôo. Chega até a ser cômico:

  • antes de entrar no galpão da imigração, uma farda distribui os formulários para preenchimento, ali de fora mesmo, numa fila que outra farda organiza. Cada passageiro ajeita-se como pode em pé, procura caneta dali, daqui, apoia o papel na mala, na parede, abre/fecha mochila para tirar o passaporte, etc.
  • Aí começa o malabarismo das fardas neste saguão com ventilação e iluminação precárias. Duas fardas andam pra lá e pra cá, outra abre gavetas, mexe, mexe; conversam entre si, saem. Volta outra, liga computador, mexe na gaveta, pega papel, sai. São dois guichês sem funcionário. Um para o pagamento de 30 dólares, outro para apresentar o passaporte. Para isso, uma farda organiza outras duas filas. Uma pessoa fica, pelo menos 10 minutos, em cada guichê. No primeiro paga-se; uma farda sinaliza e troca-se de guichê (!) para o passaporte… dizem as boas línguas que no Brasil já foi assim…
  • Neste ínterim, o senta-levanta das fardas continua em câmara lenta. As longas filas em silêncio, só os olhos se reviram uns para os outros… discretamente. Se alguém esboçar um mínimo gesto de impaciência, a coreografia é interrompida e — bem depois — recomeça-se mais devagar ainda!
  • É muito interessante a demonstração de poder — exercido somente ali — pelo staff da imigração. Compondo o teatro, há uns 3 ou 4 imitadores dos doríforos, parecendo dormir de olhos abertos, imóveis ao fundo. Doríforos eram aqueles soldados ou lanceiros antigos que, em rígida posição de sentido, seguravam as lanças…
  • As malas — uma montanha! — ficam à parte. Vencido o túnel da paciência 🙂 pegamos nossa única mochila e as férias recomeçam!

O pessoal da terra fora do galpão, com um sorriso fácil, é prestativo e gentil. Um grupo de rapazes de etnia Shona, em peles de antílopes como guerreiros, dança e canta vigorosamente. O ritmo é contagiante. O convite para cair na dança é aceito num impulso, para o gáudio/espanto dos turistas europeus! Os guerreiros se alternam para ensinar os passos, as reviravoltas, aí tudo se transforma em risadas e boa ginástica.

Os policiais, na praça, usam um cassetete muito comprido ou um estilingue cuja forquilha termina em uma ponta aguda como uma faca. Isto causa mal-estar e revela o nível de opressão à qual aquele povo cordial está submetido.

Victoria Falls, a vila, é cheia de lojas de artesanato, saias e turbantes coloridos e muitos hotéis. Nas ruas, exposição de esculturas e pinturas exóticas belíssimas.

Zimbabwe — The Victoria Falls Hotel

The Victoria Falls Hotel” tem uma atmosfera envolvente, com mais de 150 apartamentos em amplas alas interligando jardins, restaurantes, elegantes salões. Há um especialmente para jantares de gala, com orquestra de câmara, onde vestidos longos e smoking são de rigueur. Divertimo-nos muito em observar o requinte… …de uma distância segura! 😉

A entrada principal, em colunas, conduz à vista das cataratas. A gente nem acredita ao ver o chumaço de nuvens de vapor subindo ali bem perto. Da varanda do restaurante a ponte entre Zimbabwe e Zâmbia fica dourada ao por do sol, ao som do piano. Sabe aquela sensação de estar vivendo num filme ou romance de época…?

Salas com mobílias confortáveis se abrem para pátios com fontes, flores e majestosas árvores, incluindo espaço para exposições de arte, jogos e reuniões. Os corredores bem largos, com tapetes grossos e fofos, têm as paredes cobertas com a história do domínio inglês, que sugou o máximo das terras de além-mar. Também lá está a família “imperial” em 1947: a rainha-mãe, a jovem princesa Elisabeth e outras damas em incríveis chapéus, vestidos finos, saltos no meio do mato, às margens das cataratas.

As mangueiras e as árvores centenárias são enormes, debaixo destas florescem begônias, inhame — Colocasia Esculenta — e outras variadas folhagens numa terra preta, fofíssima. Todo o gramado tem exóticas cercas-vivas com frutinhos pretos e exposição de esculturas em pedra.

A piscina, um enorme retângulo de pedras coloridas, tem uma fonte com degraus de cada lado; é funda com fortes duchas laterais. As chaises longues espalhadas em volta atraem bando de macacos que brincam por ali. Um caramanchão abriga um espaço gourmet, principalmente, para churrascos. O vestiário tem piso de mármore xadrez, com todos aqueles mimos cheirosos e cravos naturais. Tudo limpíssimo! Ao fundo, um salão com arcos em estilo árabe, refrescado por ventiladores, oferece altos e macios almofadões. Irresistível não cair em um deles… dormimos profundamente naquele cenário de 1001 noites.

Todos os funcionários do hotel são negros — dos mais simples aos da administração. Aliás, a não ser turistas, não vimos brancos na cidade das cataratas. O pessoal é muito atencioso, bem-humorado; a mistura de etnias — Shona, amaNdebele ou Zulu e Tsonga — parece dar muito certo. Todos recebem, com um grande sorriso e efusivas exclamações, a palavrinha mágica: Tatenda, Siyabonga, Inkomu. Fazemos questão de aprender “obrigado” nas línguas da terra.

Este hotel, construído em 1904, demonstra o luxo, o conforto, a sofisticação que os imperialistas ingleses desfrutaram nestas terras africanas. Pode-se imaginar o deslumbramento dos europeus neste paraíso e daí as histórias, os dramas, a espoliação, o poder…

Zimbabwe — As Cataratas

O turismo gira em torno de Victoria Falls, claro! A Rovos Rail — uma companhia ferroviária — é considerada o “orgulho da África”. Este trem-safari percorre vários países ligando-os de norte a sul através das mais diversas paisagens, história e cultura. Victoria Falls é um dos destinos preferidos, com pernoite no hotel.

A viagem pode durar de 3 dias, numa expedição ao Zimbabwe, ou até 34 dias, da Cidade do Cabo ao Cairo. A Rovos Rail é o resultado da obsessão por mecânica de um visionário, que comprou num leilão dois vagões antigos para restaurar e usá-los com a família. Muito trabalho e obstinação transformaram este sonho em sólida empresa. A viagem inaugural, em abril de 1989, foi com uma locomotiva, 7 vagões, 4 passageiros pagantes, amigos e imprensa.

Porém, há um meio mais simples, mais prático de chegar às cataratas de trem. Aqui mesmo, nos jardins do Victoria Falls Hotel, nos mesmos trilhos do Rovos Rail, embarcamos no bondinho muito romântico, serviço de bordo, tapete vermelho e tudo!

Poucos minutos depois, a imigração em Zâmbia. Um dos guias, com túnica e turbante, é o encarregado destas funções, enquanto são servidos salgadinhos, vinhos, água, refri. Os sinuosos trilhos nos levam até a ponte sobre o rio Zambezi — Victoria Falls Bridge — uma obra de arte, um triunfo da engenharia. Gentilmente, o motorneiro pára no meio da ponte e as cataratas entre Zimbabwe e Zâmbia se apresentam num momento mágico, no qual sentimo-nos suspensos…

Podemos perambular e curtir a montanha de água lutando entre os penhascos. Já em Zâmbia, um parque cheio de gibões abriga o centro de visitantes, onde os turistas são recebidos com champagne e guloseimas. Na sala, uma maquete mostra engenhosos detalhes. Somos brindados com a narrativa do engenheiro francês construtor; o jovem Georges Imbault narra todas as peripécias, aventuras, coragem e técnica dos 14 meses de construção da ponte, inaugurada em setembro de 1905.
O carinha está tão bem caracterizado e desenvolve perfeitamente o personagem que chega a confundir uns poucos turistas. Percebem o teatro quando o ator, mostrando a pele do braço, diz: “sou francês, mas estou dessa cor negra por causa do sol de Zâmbia”.

Trazidas as peças fabricadas da Inglaterra, a ponte foi montada, ao mesmo tempo, de ambos os lados, suspensa a 128m sobre o abismo, encaixando-se perfeita e precisamente no centro. Consta não ter havido acidentes fatais durante a obra.

Além da ponte, uma grande atração aqui é o Bungee Jump de 111m. Vimos, com admiração, turistas voando sobre o majestoso rio Zambesi.

Em mais uma cortesia, o motorneiro esperou o sol se por…

Zimbabwe — As Cataratas de Helicóptero

A manhã clara convida para o vôo. É fascinante:

O rio Zambese vem de longe, espraiado, mansinho… de repente uma fenda estreita e bem funda. As águas se transformam em roldão forte, camadas imensas de flocos espumantes despencam na gigantesca fratura de 108m de profundidade.
A catarata não forma represa ou bacia, as águas volumosas correm represadas entre os penhascos… o rio serpenteia, preenche o leito em curvas e nos deixa sem fala. O helicóptero pousa… fica dentro da gente este mundo inigualável!

À tarde, cruzeiro no Zambese:

Este dia ainda nos reserva uma agradabilíssima surpresa. Um 4×4 nos conduz, pelas estradas de terra de Zâmbia, até às margens do Zambese. Uma embarcação confortável e simples é apropriada àquele passeio no rio manso e silencioso.
A tripulação atenciosa oferece um coquetel aos poucos sortudos passageiros. Uma alegre interação se deu entre nós: turistas do Sri Lanka, Inglaterra, Austrália, África do Sul, Suíça, Alemanha, Estados Unidos e Brasil.
É possível que aquele rio selvagem, os pássaros coloridos, as florestas às margens distantes, o som das águas tenham proporcionado o ambiente tão harmonioso.
É aniversário de uma passageira e cada um de nós, na própria língua, cantou “Parabéns pra você”. A diversidade de sons, a brincadeira espontânea fizeram aquele momento muito especial. Certamente está guardado na caixa de boas lembranças aquele por do sol no rio africano.

Zimbabwe — As Cataratas… a pé

De longe, já se ouve o som tonitruante das águas do rio Zambese. O parque está bem preservado, a vegetação é densa e um altivo Livingstone contempla do pedestal a sua descoberta mais famosa. Há um projeto do governo para mudar o nome de Victoria Falls para Mosi-oa-Tunya, denominação original em língua Tonga.

As cataratas de Iguaçu, Victoria e Niágara estão na lista das modernas maravilhas do mundo. Se houvesse uma única possibilidade para apenas uma viagem em toda uma vida, uma daquelas seriam a opção possível. São incomparáveis. Então, se você ainda não esteve em Iguaçu, vá correndo! Está alííí, ó… ser brasileiro e não se presentear com as nossas cataratas é peccato.

Há vários pontos de observação e as formações de pedra e cataratas principais recebem os apelidos:

Devil’s CataractMain FallsRainbow Falls (a mais alta) e Eastern Cataract.

Em duas horas — poderia ser muuuito mais!  — vamos percorrendo as margens e o espetáculo das águas atinge, num crescendo, uma beleza inimaginável. A força tão grande da queda faz “chover” em toda a área. O spray d’água, colorido por arco-íris, dificulta fotografias. Cautelosos turistas — vão se derreter? — se embrulham numa capa impermeável. Perdem uma sensação maravilhosa:

o prazer de deixar os pingos grossos e mornos encharcar nossas roupas e lavar a alma!

 

Serra do Roncador — Mato Grosso #1

O livro dos Villas Boas — Expedição Roncador-Xingu 1945 — foi a inspiração.

Poucas horas de vôo de Confins a Goiânia; daqui a Barra do (Rio) Garças, aproximadamente, 5 horas de carro; este tempo não se vê passar.

No aeroporto, o jovem e dinâmico casal da Roncador Expedições já à espera. Sinara e Ralph são dedicados, gostam da terra e de mostrá-la aos visitantes. Isto faz toda a diferença. A Pousada Tropical está fora do mufurufo, é bem agradável; a gente percebe o desejo de, a cada vez, melhorar as acomodações e o atendimento. Os apartamentos se abrem para a varanda e jardim com uma boa piscina: indispensável para relaxar e recuperar a energia para as surpresas do dia seguinte.

  • Tour Serra do Roncador

A 65km está a imponente Roncador. O nome vem do som do vento correndo pelas grutas e cavernas. A serra se estende por 800km e separa os rios Araguaia e Xingu.

O “causo” mais famoso é do Coronel Percy Fawcett, chefe de uma expedição inglesa, desaparecido na região em 1925. As versões são as mais variadas e inverossímeis. Cotejando as condições de hoje e as da expedição dos Villas Boas, dá pra concluir que aquele europeu aventureiro morreu mesmo foi pelo ataque de um exército, contra o qual não havia armas: muriçocas, abelhas, bernes, marimbondos, formigas, carrapatos! 🙂

Na esteira de que o Coronel Fawcett buscava uma cidade perdida, por ele denominada Z, desenvolveu-se uma aura de misticismo, sendo a Roncador um campo fértil para a UFOmania, crenças e cultos, pouso de ETs e discos voadores — em Barra do Garças há, até, um discoporto!

Certamente as formações rochosas, fechando a imensidão verde, levam à contemplação, ao silêncio. Uma riqueza geológica ainda, praticamente, desconhecida desperta aqueles sentimentos e acresce a magia da serra.

O caldo suculento de frango, a costelinha, a pimenta esperta são a comidinha no ponto de almoço da simpática dona Maria. O filho de uns 12 anos, Leandro, pula prontamente para nos atender, é ativo e tem os olhos brilhantes de um futuro empreendedor.

A Vereda dos Sonhos justifica o apelido. Agora a gente entende a paixão de Guimarães Rosa pelas veredas — o habitat das elegantes palmeiras de Buriti. É uma extensão de águas claras e, nesta época, fica coberta de florinhas bem miúdas, transformando o espelho d’água num veludo lilás.

Ricardo, nosso guia, curte tudo aquilo e não nos apressa! No campo, uma variedade enorme de pássaros e, de repente, um bando de araras azuis nos saúda, numa reviravolta melodiosa e colorida.

Despencando na serra, as Cachoeiras Gêmeas! A serra vai se transformando ao por do sol… as cores mudam drasticamente nos paredões e vão surgindo, da imaginação de cada um, as figuras, os perfis… aquele lugar ermo é incomparável.

Subindo uns 300m, a Gruta da Estrela Azul com marcas rupestres.

A Roncador Expedições nos reserva um final de passeio muito especial neste primeiro dia: a formação do Arco da Pedra, um belo portal onde aguardamos o anoitecer acolhidos por um côncavo morno na pedra… apenas nós naquele lusco-fusco, a chegada das estrelas ainda no céu teimosamente claro e o silêncio do mato!

Domo de Araguainha — Mato Grosso #2

O domo é uma das 5 maiores crateras do mundo. Tem 40km de diâmetro, formada pelo impacto de um meteorito há 250 milhões de anos. O nome é devido ao formato das rochas estilhaçadas. Essa cratera, profundamente erodida, é um astroblema que apresenta anéis concêntricos de colinas e vales. O estudioso Ruy Ojeda, residente em Ponte Branca, gentilmente nos falou sobre o fenômeno.

A importância dos sítios geológicos é, em geral, desconhecida da população. O primeiro passo para a preservação do Domo de Araguainha é a conscientização da população e, principalmente, dos governantes, do valor inestimável deste patrimônio histórico-científico. Os serviços de terraplanagem já danificaram muitas rochas ao longo das rodovias, conforme denunciam os estudiosos.

  • Tour Domo de Araguainha

No acesso a Araguainha — situada no núcleo do astroblema — e Ponte Branca fica mesmo caracterizado o descuido com a belíssima natureza desta região. A rodovia em obras tem muitos desvios, a poeira chega a ficar impenetrável e montes de terra, em muitos pontos, são jogados nas veredas e riachos. Aliás, em Mato Grosso, vê-se lixo em todas as partes: nas ruas, nos quintais, nas praias de areias brancas, etc.. Uma pena!

A cratera só é visível via satélite, mas o círculo de serras azuladas e contorcidas é uma bela moldura da região. Na Serra da Arnica são visíveis os movimentos ali cristalizados pelo impacto do meteorito. As gigantescas árvores de Baru — uma castanha com gosto de amendoim — as douradas árvores “escorrega-macaco”, a paisagem 360° de horizonte, nos silenciam.

  • Córrego do Barreirão

O tal do Barreirão, cheio de pedras, forma cavernas e “panelas” talhadas a compasso! Uns poços bem profundos de águas cristalinas, outros acessíveis para um bom mergulho, as quedas de águas espumantes da Cachoeira do Fuzil formam um grandioso espetáculo. Isto compensa regiamente o sobe-e-desce e os tropeços do caminho. Eduardo, o prestativo guia do domo, nos leva a deliciosas duchas… friazinhas!

  • Ponte Branca

Calçada em bloquetes hexagonais, uma avenida arborizada corta a cidadinha tranquila. A praia da turma é o ribeirão Candeeiro e suas areias brancas e águas claras.

Um trecho impressionante do Rio Araguaia contorna a cidade, com uma ponte precária de madeira — os pilares são de concreto, ufa! — por onde transitam caminhões pesados.

Toda a gente nos recebe muito bem, até tomamos, para nós, a simpaticíssima comadre de Ricardo, nosso guia no jipão. Ela nos ofereceu um frango com pequi muito gostoso sob a frondosa mangueira do quintal. Um luxo!

  • Rio Araguaia

Curtimos tudo naqueles 50km de subida e descida da imensidão azulada do Araguaia, que é todo nosso; vimos ninguém mais! Os olhos de Dimas, nosso comandante, acendem ao apontar cada pedra, cada curva, cada pássaro. Conhece palmo a palmo. É também exímio timoneiro ao contornar as pedras enormes e, principalmente, atravessar um estreito portal formado por duas grandes lascas e fortes corredeiras. Uma aventura!

Apesar de bem maltratado pela inconsequente criação de gado em suas margens, o portentoso Araguaia é um sobrevivente lutador. O rio é belíssimo, as árvores — as restantes — formam um paredão verde cheio de pássaros, os mais diversos.

No final da tarde, uma demonstração das mais surpreendentes: sobre o barco, uma grande revoada de garças brancas voltando para casa…

Este passeio — ou sonho? — no Rio Araguaia é um highlight da Roncador Expedições.

Aeroporto — o melhor lugar…

…do mundo! Aqui cessam as obrigações e as amarras.

Ouvem-se, apenas, queixas contra os aeroportos. Certamente há motivos, mas a gente consegue transformar este quadro. Aliás, tudo nesta vida, todos os acontecimentos têm a coloração, o sabor e o impacto determinados pela postura e pela disposição interior de cada um de nós. Claro, esta teoria é, quase sempre, rejeitada. Sim, é uma tarefa espinhosa reconhecer nossa parte e responsabilidade pelo modo de encarar e reagir aos fatos. Estes são alheios à vontade. A reação, não.

Bem, vamos à prática. Para curtir e transformar o aeroporto — e a viagem — há táticas comprovadas repetidamente. Apenas experimentando-as você verá ser possível executá-las e desfrutar do prazer daí decorrente.

É um método Zen. Calma, muuuita calma:

  • antecipar — sobretudo para si mesmo — a data oficial da viagem para um dia de antecedência. Isto é, avise pra todo mundo o “dia 2”, por exemplo, quando a viagem for mesmo no dia 3. Na volta, o mesmo esquema, para garantir um dia de sossego. Ao invés de “desperdício” de dois dias, esta folga será altamente compensadora;
  • no dia antecedente — “dia 2”, no caso — todos os compromissos, telefonemas, visitas, pagamentos, aniversários, presentes e outras encrencas estão resolvidos: você JÁ viajou!
  • leve isso a sério. Acredite nesta data oficial e terá o “dia 2” para:

    se levantar com calma,
    tomar lauto café com música,
    desligar telefones e internet,
    especialmente o Sr. Celular seu chefe,
    um banho comprido e namorar;

  • a malinha — quanto maior a mala, maior a insegurança do passageiro — já fechada proporciona ao corpo e mente o início de relaxamento para se incorporar à leveza Zen;
  • no dia seguinte — esta tática pode-se botar em prática sem delongas — a saída para o aeroporto será com quatro horas de antecedência. Aqui, uma regra de ouro: vá SEM carona. Recuse firmemente qualquer oferecimento. Uma chatice levar alguém ao aeroporto. Chatice ainda maior é buscar! Amigos e familiares ficarão sinceramente surpresos e agradecidos;
  • a ida ao aeroporto JÁ é a viagem! Com o exercício Zen é possível e gostoso deixar os olhos e a mente deslizarem pelas ruas, construcões, buracos, jardins, lixo, pessoas… a cidade será outra;
  • são quatro horas de antecedência, sim; pois no check-in antecipado as atendentes estão mais solícitas. Não há os aflitos empurrando um monte de malas, bolsas e mochilas sobre os outros, como se o balcão fosse desaparecer;

  • agora, com apenas uma nécessaire — ah! o luxo da leveza! — um tour, preferencialmente sozinho/a, pelos arredores. Nos aeroportos há os refúgios silenciosos e desertos de templos/capelas; alguns surpreendentes. Há exposições de bordados, artesanato, antiguidades, fotos, livrarias, jardins, bons restaurantes… etc. Com disponibilidade encontramos pessoas inteligentes e bem-humoradas. Há cantinhos escondidos, onde se pode ler sossegadamente e até meditar;
  • os lounges das companhias aéreas, também quando se chega mais cedo, são um mini-hotel com boa comida, sofás macios e banho confortável;
  • desligue-se da previsão do tempo. Agora, no aeroporto e para a viagem, a sorte está lançada: sol, chuva, vento, frio, calor estão fora de controle. É lamentação inútil, melhor aproveitar;
  • nada de entrar em lojas! Enquanto a gente fizer compras não há, realmente, viagem. Diferentemente é deixar-se perder nos bazares orientais, mercados e feiras étnicas;
  • viajar com familiares e amigos de longa data traz vantagens. Contudo, esta “juntidade” impede o inestimável benefício de viajar: a releitura à distância do habitat, da convivência e do cotidiano. Este distanciamento traz insights inesperados.
  • Duas regrinhas para minimizar arrependimentos:
    • marcar hora e lugar de reencontro, para que cada um possa ceder espaço e tempo ao outro;
    • instituir o sagrado direito de ninguém esperar ninguém. A não ser, claro, para quem não consegue ficar consigo mesmo — aí não tem remédio, “não tem jeito mesmo”, nem viagem!

As pessoas viajam. Muitas vezes, na volta nada trazem. Vão, mas a viagem não volta com elas.

Curta ou longa, uma viagem significa via de mudança. Ver, cada vez, como se fosse a primeira… incluindo o aeroporto.

Andanças

As Erínias caem no mundo: Lisboa, Munique, Nova Delhi, Sikkim, Bhutan, Nepal, Nova Delhi, Verona, Veneza, Montenegro, Atenas, Ilhas Gregas, Lisboa.

• Muito agradável Lisboa, como sempre. Os portugueses… se pedimos informações ou puxamos papo… são prestativos e amáveis. A Fundação Gulbenkian e suas preciosidades valem a visita.

O Oceanário de Lisboa é muito bem cuidado e a gente se sente tão pequeno naquela beleza toda.

Desta vez quisemos percorrer o itinerário de Raimundo, o personagem de “A História do Cerco de Lisboa”. Este livro de José Saramago é pra ser lido mil vezes! Sim e sem exagero! Esta oitava leitura ainda traz espanto, encantamento, descobertas. Desconfio serem autobiográficos os traços do inefável romance descrito ali. Este SaraMago das palavras é um saraMágico da narrativa!

Munique é uma mistura de tradição e modernidade. Em meio a uma praça com edifícios ultra-avançados, uma escultura revela uma história do século XI. O bonde, metrô, ônibus, rigorosamente pontuais circulando entre parques com lagos e jardins, as bancas de frutas e dálias exuberantes amenizam a cidade grande.

Também os sinos em todas as praças — em geral, só para pedestres — dão um toque especial. As lojas de chás e especiarias nos transportam para lugares exóticos. O cheiro é delicioso!

O Palácio Nymphenburg, antiga residência de verão do rei da Bavária, é imenso, recortado por fontes e jardins. A bomba d’água do sistema de irrigação funcionou do século XVII até 1804, quando foi “modernizada” e até hoje está firme, a mais antiga da Europa!

Munique, desta vez, nos reservou uma agradável surpresa. Geralmente, os lugares públicos são para exposição de produtos à venda, propagandas, etc.. Aqui num espaço ao ar livre, dia e noite, em frente ao Gasteig — centro cultural sede da Orquestra Filarmônica — está um piano aberto. Ao lado, um convite: “Spiel mich” — toque-me! Assim, quem se sentir habilitado pode dar um concerto ali mesmo. Um jovem tocou muito bem para o enlevo dos passantes deliciados com o inesperado presente musical. Não é uma excelente idéia?

 

Andanças — Darjeeling, Índia

Darjeeling, uma cidade incrustada a 2045m de altitude no Himalaya, é emoldurada pelo imponente Kanchenjunga, o terceiro pico mais alto do mundo.

De Munique, voamos para New Delhi. Pernoite no Lemon Tree Hotel; muuito bonito e muuito confortável. Este contraste entre o luxo e a miséria da população nos choca a cada vez. O sistema de segurança no hotel é bem rigoroso: os veículos são parados em uma cancela e revistados, incluindo o motor. Os hóspedes passam pelo controle de raio-X e revista pessoal à parte. Pelo menos, o atendimento é cuidadoso e o pessoal muito cortês.

Vôo de Delhi a Bagdogra, com conexão em Kolkata/Calcutá. Tudo muito verde, cheio de palmeiras. A floresta exuberante, que cobre quase todo o Himalaya, já começa aqui. Nestas regiões chove quase todos os dias, daí a vegetação inigualável. Em Bagdogra começa a verdadeira Índia.

Somos recebidos pelo guia Anand numa simples e tocante cerimônia de origem tibetana. É a entrega da khata, uma echarpe de seda branca ou palha. É o símbolo budista de boa vontade, boas vindas, compaixão, amizade e pureza. É oferecida em solenidades oficiais com os lamas e, também, em casamentos, aniversários, funerais e em outras ocasiões significativas. Vimos, depois, essas echarpes/khatas amarradas em mosteiros, carros, varandas, jardins. É, sim, um sinal de gentileza e de paz.

Aqui em Bagdogra, onde pegamos um 4×4, é um espanto só: gente, vacas, cães, cabras, carroças se misturam ao buzinaço constante. Logo ali, um mercado ao ar livre de frutas e verduras, temperos e pós de todas as cores. Em qualquer canto, frituras em tachos fumegantes, sacos de peixes secos e duvidosos. Uma garota se aproximou, apontou para um saco. O vendedor pesou com uma pedra (!) e entregou-lhe uma “mão” de cascas de camarão numa folha de jornal. Lixo por toda a parte.

A gente vai subindo, subindo, passando por vilarejos em estrada muito estreita e precária. Os contorcionistas — ops! — os motoristas fazem incríveis manobras em ultrapassagens com os retrovisores recolhidos. Cada um se esforça e quem puder vai passando… sem xingatório. Nenhum acidente!

Em Darjeeling acrescente o trem ao mufurufo. Vem apitando de longe e o pessoal, carros, bichos desocupam, sem atropelos, os trilhos. Da janela do trem, que parece despencar às sacudidelas, dá para pegar qualquer produto no balcão ou dependurado nas vendinhas enfileiradas à margem. O comércio de bugigangas é intenso.

Darjeeling é uma cidade com uns 200 mil habitantes. No “centro” uma pequena parte plana e a outra grande encarapitada no Himalaya. Por causa das montanhas, os espaços são ocupados verticalmente. Casas boas e outras caindo aos pedaços. Janelas e varandas enfeitadas com flores “brasileiras”. As “trombetas” ou “saias-brancas” — Brugmansia — são imensas e belíssimas. Coloridas begônias nas varandas carcomidas pelo sol e chuva. Parece não haver coleta de lixo. Tudo, tudo é jogado na rua e nos quintais.

O Hotel Elgin é uma elegante e antiga vila inglesa com um jardim cheio de vasos de flores. A comida muito boa e variada. A pimenta bem forte é quebrada com molhos à base de iogurte. Ah! Café de verdade não tem, apenas o solúvel, argh! O chá, muito bom, é a bebida oficial de qualidade reconhecida internacionalmente.

• A atração pitoresca é o “Toy Train” — Darjeeling Himalayan Railway — com a mesma locomotiva desde 1881. É a segunda estrada de ferro mais alta do mundo! O apito e o barulho da locomotiva são ensurdecedores. O trajeto curto com paradas para fotos e para absorver a paisagem.

• O Museu do Everest, com uma boa maquete de toda a cordilheira, ressalta as escaladas dos indianos. Os equipamentos, vestimentas, aparelhagens, fotos, depoimentos mostram os sucessos, as tragédias e a tenacidade dos alpinistas de todas as épocas nos misteriosos cumes gelados.

• A Escola de Alpinistas, perto do Museu, recebe “alunos” de todas as partes do mundo. Não permitem visitas. A gente contempla cá de fora… com uma inveja danada!

• O Zoo de Darjeeling é renomado, grande, em meio a uma floresta. Entre outros, há ursos, tigres e o fofo panda vermelho, com um rabo peludão. Havia animais visivelmente estressados. Decididamente os zoológicos são prisões cruéis e deveriam ser fechados.

• Emocionante este mosteiro Yiga Choeling Ghoom, um agradável refúgio budista. Se houver alguma saída para este mundo… será pelo budismo.

No final da tarde, o fervedouro de Darjeeling é impactante… ali a imponderável ordem no caos…