Andanças — Kalimpong, Índia

É indelével a imagem de homens e mulheres, exaustos e desnutridos, curvados sob o peso de botijões de gás, sacos de cimento… transportam tudo, como animais de carga.

O rumo é Kalimpong, uma cidade a 50km de Darjeeling. Se esta viagem tivesse nome, seria o roteiro do espanto, da perplexidade. Chega a ser brutal o contraste entre a natureza exuberante e as condições de vida nessas bandas ao norte da Índia.

A região é belíssima, com o Himalaya cada vez mais verde e recortado. Mas, os deslizamentos de pedras e terra — pela falta de contenção e corte de árvores na abertura de acessos — são uma roleta russa nessas estradas.

Aparentemente, a manutenção de estradas se faz, apenas, em casos extremos. Agora mesmo, fomos parados para uma desobstrução: uma pedra despencou, e não faz muito tempo.

As montanhas são salpicadas por incontáveis e belíssimas quedas d’água de centenas de metros de altura. Muitas vezes, essas correntes caudalosas inundam as estradas que serpenteiam à beira de profundos despenhadeiros e canyons. É de uma beleza arrepiante. Não há outro caminho. Ao cruzar com outro veículo, a gente fecha os olhos. Numa das curvas, vimos um veículo “aterrissado” lááá no fundão, com as rodas para cima.

Os campos de chá são uma incrível paisagem ondulante a perder de vista. Caminhar pelas cheirosas trilhas de chá é muito agradável. A gente tem vontade de ficar por ali. A colheita é feita, principalmente, por mulheres, a 2 dólares/dia — 130 rúpias. A fábrica de chá de uma multinacional está cheia daqueles chavões de marketing: missão, objetivos, proteção ao trabalhador, ao meio ambiente, etc. etc.. Na prática, tudo muito longe deste discurso.

O centro de Kalimpong, sem a vista ímpar do Kanchenjunga — o 3º pico mais alto do mundo — é ainda mais caótico do que Darjeeling. A cidade é velhíssima.

Mulheres de todas as idades são enfeitadas, envoltas em saris e echarpes de cores fortes e douradas. As sandálias com pedrarias mostram unhas — sim, a dos pés! — pintadas e compridas como garras.

Nesta mistura de mercado, frituras, gente, sujeira e montes de tubulações, as pessoas são muito amáveis; a cidade é segura para turistas. Não há notícias de roubos ou assaltos.

O comércio é intenso e variado. Não vimos grades e as mercadorias se espalham pelas ruas, pelos balcões sem aparente vigilância.

O Hotel Silver Oaks — da cadeia Elgin — pertenceu, no passado, a gente importante. Tem amplos salões, incluindo um bom restaurante. Os jardins mostram a riqueza da flora de Kalimpong, rododendros, orquídeas e magníficas folhagens.

Saindo da cidade — ufa! — as estupas do Mosteiro Durpin. Aqui, e onde há monges budistas, é significativa a diferença. Tudo limpo. A atmosfera é leve e cativante!

As pinturas e mandalas, ricamente detalhadas, contém a doutrina e a tradição do budismo tibetano. Dá para perceber que o budismo é um ponto de encontro: recolhe, aceita, incorpora as diferenças culturais; parece não haver exclusão do outro, nem donos da verdade.

Andanças — Sikkim, Himalaya

A cerveja típica é a Chhaang ou Tongba. Uma mistura de milhete ou cevada despejada num tubo alto de bambu. Aos poucos, acrescenta-se água quente para absorver o gosto. Degustada lentamente por um canudo, também de bambu, é exótica, elegante e deliciosa!

A magnífica região de Sikkim esconde-se no Himalaya entre Nepal, Tibet e Bhutan, protegida pelo imponente Khangchendzonga.  É a terra dos rododendros inigualáveis — principalmente em Barsey — orquídeas selvagens, picos nevados — o terceiro mais alto do mundo — rios cor de turquesa, majestosas cachoeiras, lagos sagrados, florestas de magnólias, bambus, pássaros raros e milenares mosteiros. Sikkim conversou-se intocada por séculos. Aqui é o lugar onde a terra e o céu se encontram, abençoado pelos lamas tibetanos. O seu povo de natureza dócil é descendente das etnias Lepcha, Limba e Buthia.

O reino de Sikkim passou por períodos turbulentos com invasões dos nepaleses, bhutaneses e a guerra Gurkha/Gorkha em 1841. Isto sem contar as intervenções do império britânico, quase sempre desfavoráveis às colônias e à vizinhança.

A história recente relata fatos que culminariam na desejada anexação de Sikkim — até então um país independente — pela Índia. A versão oficial é a do plebiscito de 1975 favorável à anexação; assim, o belo reino de Sikkim tornou-se o 22º estado indiano. Contudo, a versão do povo e dos jornais da época é bem diferente.

A consulta popular, através de plebiscito, foi organizada a toque de caixa. O resultado favorável à anexação — 97.5% (!) — é duvidoso, segundo fontes históricas e jornalísticas. O livro do conceituado jornalista Sunanda K. Datta-Ray — Smash And Grab — descrevendo este processo de anexação foi banido da Índia. O governo de Indira Gandhi teria manipulado a opinião pública, explorando a divisão étnica entre nepaleses e os nativos, desmoralizando a monarquia e, o mais grave, fraudando o plebiscito!

Entre as reviravoltas políticas, o romance entre o príncipe viúvo P. T. Namgyal, futuro rei/Chogyal, e a jovem americana Hope Cooke é um autêntico conto de fadas.
Eles se conheceram em Darjeeling no exclusivo e elegante Windamere Hotel em 1959, numas férias de verão de Hope. A solidão na infância de ambos os atraiu fortemente.

Hope ficou órfã aos 2 anos. Cresceu com os avós. Gente muito rica mas indiferente e sem calor afetivo. Estudou em bons colégios, é uma pessoa afável e interessante. Escreveu recentemente a autobiografia Time Change.

Casaram-se em 1963 num mosteiro real em Gangtok, sob as bençãos de 14 Lamas. A noiva, com um vestido de seda de Benares, um cinto de ouro com uma adaga e demais acessórios de pedras preciosas, percorreu o templo sob o som de trombetas tibetanas, toque de címbalos e cantochão dos Lamas.

A jovem rainha se interessou pela cultura do país, envolveu-se em programas educativos, melhorando a condição das crianças em idade escolar. Eles foram muito felizes… mas o conto de fadas não resistiu aos sérios problemas políticos. Com a anexação, o rei foi deposto e Hope voltou aos Estados Unidos com os filhos, onde mora até hoje. O 12º e último rei de Sikkim morreu com câncer em 1982, finalizando uma auspiciosa dinastia iniciada em 1642.

Este retorno ao passado é ao redor do Chhaang saboroso, aqui em Gangtok, a capital, nosso próximo post.

Sikkim — o Paraíso dos Andarilhos

A cadeia de montanhas oferece caminhadas de 280m a 8586m de altitude, onde se alcança o pico Kanchenjunga: “Os Cinco Tesouros das Neves”. É o paraíso dos trekkers. Cada um pode escolher o nível de desafio aos deuses do Himalaya.

Yuksom ou Yuksam, significa “lugar de encontro dos sábios”, é hoje um pequeno e pobre vilarejo. Foi a capital de Sikkim de 1641 a 1670. Neste lugar, três Lamas tibetanos escolheram o monarca dos Bhutia, a etnia predominante, de natureza dócil. O rei recebeu o título de Chogyal, i.é, rei virtuoso, e a dinastia o de Namgyal, que reinou até 1975, quando Sikkim foi anexado à Índia, como 22º estado.
Os Lamas coroaram o Chogyal em um trono de pedra, ainda hoje atração para turistas e peregrinos.

Yuksom é o portão de entrada para os picos nobres, incluindo o Kanchenjunga, a morada da deusa Dzo-nga. Daqui partem excursões durante todo o ano pelas trilhas de rododendros, pinheiros, abetos, pastos de yaks, rios, lagos e cachoeiras. Entre estas a espetacular queda da pedreira do Khangchendzonga. Aqui, apenas um detalhe:

Khecheopalri é o lago sagrado entre Yuksom e Pelling. Tem o formato de um pé gigantesco. Está bem escondido, é uma surpresa no fim da trilha. Aqui, o agradável corredor ladeado de rodas de oração nos leva à margem. Segundo uma lenda, os pássaros recolhem as folhas que caem na superfície. Realmente é um espelho verde cintilante. Dizem, também, ser o Lago dos Desejos — contemplar suas águas os transformarão em realidade… fique atento!

O Kathok é o irmão menor do Khecheopalri. Curtimos lá um piquenique! Às margens dos lagos, centenas de bandeiras, rodas de oração e de sinos. Para a tradição tibetana são mensagens e sons de compaixão, de sabedoria e de paz levados pelo vento…

Os aventureiros mais bem preparados e audaciosos atacam o Goecha-La, a 4950m. É uma trilha duríssima, com temperaturas muito baixas. Quem consegue chegar lá se diz recompensado com a vista inigualável e espetacular do Kamchenjunga.

Um dos vencedores é o indiano George Thengummoottil. Ele teve, desde criança, seríssimos problemas de visão. A médica preferiu concluir que eram invencionices. Sofreu muito e, mais tarde, veio o diagnóstico: ceratocone, uma doença degenerativa incurável na córnea dos dois olhos… as imagens, as pessoas, a vida, tudo se transforma em borrões!

O ceratocone oferece as alternativas de perda de emprego, perda de esperança e até perda de vida. George escolheu outra bem diferente: luta com o ceratocone viajando pela Índia, alcançando os pontos mais altos do Himalaya. No seu blog, podemos até “ouvir” o brado:

Yes, I did it!

quando documentou a árdua subida do Goecha-La neste filme premiado:

Gangtok — Capital de Sikkim, Índia

A cidade, com a sua gente cordial e hospitaleira, é o ponto de partida para paisagens incomuns e mosteiros milenares. É uma importante referência para os estudiosos do Budismo tibetano.

O caminho para Gangtok — através de Pelling e Yuksom — é uma subida, uma subida verde, exuberante dos Himalayas. A vista é uma escada gigante com muitos telhados e o verde cristalino das plantações de arroz nos degraus. As águas-turquesa do Rio Rimbi lutam bravamente com as pedras enormes nas passagens estreitas. As pontes suspensas — quase pinguelas — onde, às vezes, passa apenas uma pessoa, acrescentam mais uma pitada pitoresca à natureza.

É curioso ver bando de crianças bem pequenas com os uniformes arrumadinhos, desacompanhadas de adultos, percorrendo longas distâncias a caminho da escola. As crianças da região são autosuficientes — uma diferença enorme das do lado de cá! — correndo pela rua, desviando-se dos bichos e dos veículos com a esperteza lhes transmitida pela vida difícil. Vimos grupos de jovens de idades variadas também de uniformes, bom sinal! Não há transporte público, todo o mundo anda a pé.

Também, curioso o trabalho pesado de quebrar pedras, sem proteção alguma, a cargo das mulheres. Vimos dezenas delas encarapitadas em montes de estilhaços, com os quais se recompõem as estradas. Curiosíssima a manobra da pá amarrada a uma corda, feita por dois trabalhadores. Um deles pega o cimento ou areia com a pá e um outro puxa na corda para ajudar no movimento. Se a moda pega por aqui…

Pernoitamos em Pelling, no Mount Pandim, um agradável hotel com inacreditável vista para o Kanchenjunga! Daqui para Yuksom há, em todas as cercas, extensíssimos pés de chuchu, enormes e velhíssimas mangueiras — exóticas novidades para os turistas alemães. As açucenas são um escândalo em beleza e cor.

Gangtok é antiga, com 100 mil habitantes amontoados em sobrados morro acima. Aqui está começando uma campanha para coleta de lixo e limpeza de ruelas, quintais e praças. O quarteirão fechado para pedestres, com lojas e cafés, é limpo; mas em geral há lixo por toda parte. Isto encerra uma interessante questão cultural: há anos, os nepalis e os nativos lepcha e bhutia jogavam fora folhas, palhas, cascas, sementes. Além disso, os bichos, ao devorarem os restos, faziam a limpeza. Com a “modernidade” vieram os plásticos, as latas, papéis alumínio, isopor, etc. etc. e o povo continua atirando tudo pela janela, como se ainda fosse degradável. É um problema seríssimo, como no Brasil também, infelizmente.

Em muitos pontos há painéis sobre o tratamento da Hanseníase, ressaltando não ser a doença hereditária, nem pecado ou maldição.

O Hotel Nor-Khill é um antigo palácio de verão do rei Namgyal, com belos jardins, boa comida apimentada e a tradicional cerveja chaang. Daqui vimos, também, um estádio no qual se desenrolava uma animada “pelada”. O futebol parece popular; muita gente veio nos consolar pelo escabroso 7×1 na última copa…

Neste hotel, ainda se serve o tradicional five-o’clock tea; o tal “chá inglês” tem origem prosaica. Foi o jeito de a Duquesa de Bedford acalmar o vazio do estômago, já que em meados do Séc. XIX o jantar era muito tarde. Assim, enganava-se com um chá Darjeeling por volta das 17:00; aos poucos, os famosos scones ou bolinhos ingleses vieram para a mesa. Não ficava bem a uma duquesa comer a sós, assim convidou algumas amigas também famintas e… ao longo do tempo virou o chá das cinco!

Gangtok não é uma cidade bonita; a gente tem excelentes motivos para vir:

  • Pemayangtse, um dos mais antigos mosteiros, a 2085m de altitude. Fui seguindo um som harmonioso e envolvente pelas escadas acima chegando — uau! — a um amplo salão onde uns 20 jovens, dois bem mais novos, entoavam os textos tibetanos. Sentei-me junto a eles, que disfarçaram o riso pela minha falta de jeito na cerimônia. O ambiente leve é aberto a todos. O acolhimento é espontâneo; a alegria dos jovens noviços é invejável; não queria sair de lá. Tais momentos trazem uma sensação muito boa de completude!
  • Dubdi-Gompa, um outro belíssimo mosteiro. O sinuoso caminho coberto de musgo já compensa a subida forte.
  • Rumtek é um dos mais importantes centros de estudo budistas da Ásia. É muito grande, imponente e colorido. Os monges lavavam, alegremente sob a chuva, o pátio enorme. Usam xilogravura de antigos textos tibetanos com matrizes de madeira, uma arte do Séc. XIV.
  • O Instituto de Tibetologia é magnífico, guarda preciosos manuscritos em sânscrito e os painéis em seda, pintados à mão, relatam toda a vida de Siddarta Gautama, o Buda.

Através de Gangtok chega-se a Nathu La Pass, um corredor de passagem entre Índia e Tibet, fechado em 1962. A antiga Rota da Seda, reaberta em 2006, é a mais alta estrada para veículos motorizados: 4.310m. Estrangeiros não tem autorização para percorrê-la.

Despedimo-nos de Sikkim e rumamos para o Bhutan, o reino do dragão.

Bhutan — o Reino do Dragão

Neste último Shangri-La, não é permitido escalar as montanhas sagradas — a morada dos deuses. Poluir as águas ou cortar as florestas atrai doenças e a ira das divindades. Invejável sabedoria!

De Sikkim se chega ao Bhutan por Phuentsholing, a cidade fronteira a 150 Km. O belo e característico portal de entrada estabelece as profundas diferenças culturais:

  • do lado indiano — Jaigaon — um redemoinho de gente, bichos, alarido, frituras, lixo, tráfego desordenado;
  • do outro lado — Phuentsholing — como num desenho, ruas em esquadro, casas alinhadas, praças limpas, numa atmosfera mais calma. Os carros de passeio só foram importados no final da década de 60; atualmente, o número de carros é ainda muito pequeno e os impostos de importação muito elevados.

O Bhutan é a terra prometida para os indianos, como os Estados Unidos o são para os mexicanos. A imigração é restrita e os indianos são admitidos, normalmente, para serviços gerais e para o trabalho pesado nas estradas, incluindo as mulheres.

O país se abriu ao turismo nesta década e parece não desejar hordas de turistas. Somente turistas com guias locais tem permissão de entrada, além do pagamento da taxa diária de US$250 a US$280 por pessoa. Assim, temos a sorte de encontrar uma terra praticamente virgem sem os pecados do turismo em massa.

Os parques são protegidos e conservados pela população. Por todo lado, muitas hortas, campos de arroz, e as “farmácias” de variadas plantas medicinais, também usadas em festivais e outros rituais.

No centro de Phuentsholing, o mosteiro Zangdopalri muito rico em mandalas e significativas figuras budistas. À noite, o templo estava lotado. Por aqui, a arte de tecer é muito valorizada e os mestres são homens. Há pouco tempo, as mulheres foram iniciadas nesta arte.

O Hotel Lakhi é mais modesto com um atendimento perfeito e gentil. Os garçons, no jantar, se afastam de costas! O recinto de massagens é bem colorido, cheio de almofadas, com um cheiro gostoso de ervas; o eficiente serviço leva a gente para as nuvens dos Himalayas!

A caminho de Paro, na encruzilhada de Punakha e Phuentsholing, os rios Wong Chhu e Paro Chhu se encontram e, daqui da ponte, a dança das águas azuladas é de rara beleza. Neste ponto, outro belíssimo portal butanês.

A Cidade de Brinquedo — Paro, Bhutan

Paro parece mesmo de brinquedo, com as cortinas vermelhas de pimenta secando ao sol nas janelas e nos telhados; com toda a gente elegante usando túnicas drapeadas, coloridas com punhos brancos. Os “saiotes” das mulheres são compridos, os dos homens vão até os joelhos com meias 3/4. Este traje típico é de uso obrigatório em lugares públicos. A arquitetura é única, variando as cores e os desenhos. Só vendo!

A cidade de Paro é o único aeroporto de Bhutan; uma cidadezinha cercada de altas montanhas completamente verdes. A paisagem é magnífica mas complicadíssima para pousos e decolagens. Apenas alguns exímios pilotos estão autorizados.

As estradas para Paro, Punakha e Thinpu — a capital de Bhutan — estão ainda em construção. Mais uma preparação para o turismo. É uma obra pesada e custosa, pois corta florestas, montanhas em curvas apertadas e salpicadas de cachoeiras. Além disso, o trabalho, iniciado há muitos anos, avança muito pouco devido às constantes paradas para o tráfego de veículos.

Bhutan limita-se com o Tibet e Índia, é uma monarquia constitucional com parlamento nos moldes ingleses. O rei e a rainha são bem jovens. O país se abriu ao turismo em 2006. Assim, temos a sorte de encontrar uma terra praticamente virgem, sem os pecados do turismo de massa. A Internet, por exemplo, só chegou no ano passado; o acesso é intermitente e eventual. Na verdade, é uma vantagem: nos faz imergir nos costumes, no cotidiano de pessoas bem diferentes, nos cheiros e cores.

O espetacular TaktsangTiger’s Nest/Ninho do Tigre — é o símbolo de Bhutan, um mosteiro budista encravado na face de uma montanha de pedra muito íngreme. Já foi destruído por terremoto e incêndio; a reconstrução é uma prova indiscutível da tenacidade e força dos seus seguidores. Originalmente uma caverna de meditação do Guru Padmasambhava, que aqui chegou, segundo a lenda, voando nas costas de uma tigresa, o mosteiro foi construído em 1692.

Cumprindo o roteiro, saímos bem cedinho para o “ataque” ao Ninho do Tigre. Paro está a 2200m de altitude e, na caminhada, sobe-se outros 800m. O acesso, bem difícil, é de aproximadamente 6 horas ida e volta. Fomos até a casa de chá, um pouco além da metade do caminho. A parte final, dizem, é pedra pura, além de centenas de degraus entalhados na montanha. A vista cá de baixo satisfaz completamente. Já fizemos o nosso Everest!

P1110743No Hotel Tenzingling recuperamos a alma! Há os banhos com pedras quentes, muito comuns nas pequenas vilas também. São construções de pedra de onde se pode ver as estrelas. No hotel, o ofurô é de madeira, com uma parte separada por tela, onde se colocam as pedras vermelhas em brasa retiradas de uma fogueira. A água é fervente e, cá fora, a temperatura é bem fria. Depois de um tempo, a gente consegue afundar-se e ficar só com o nariz de fora. Deve ser assim a sensação no útero materno.

O Reino da Felicidade — Bhutan

Os formidáveis caminhões do Bhutan são engenhosas e criativas alegorias. As cabines coloridas, cheias de espelhos, desenhos e símbolos culturais são uma festa ambulante em cada curva!

O tema de divulgação do Bhutan é a felicidade, como medida do PIB — Produto Interno Bruto. Esta meta auspiciosa e desafiadora pode ser uma esperança para nós do lado de cá.

Certamente, os butaneses alcançam altos níveis de segurança, invejável calma nas cidades, produção farta de alimentos, acessibilidade a escola e preservação da cultura e dos costumes. Aqui não há fumantes; é rigorosamente proibida a entrada de qualquer tipo de produtos de tabaco. Contudo, o alcoolismo relativamente alto e a pobreza nas vilas desequilibram esta balança de felicidade. Ainda assim, o modelo é exemplar.

Punakha, nosso próximo destino, foi a capital até 1955. A região é um vale fértil às margens dos belíssimos rios Pho Chhu (masculino) e Mo Chhu (feminino). Devido às constantes inundações a cidade foi transferida para as partes mais altas e, então, quase todas as construções são novas, naquele estilo elegante e original.

Imperdível o majestoso e antiquíssimo Punakha Dzong; o mosteiro, com várias edificações artisticamente decoradas, tem no pátio uma árvore milenar sob a qual Buda teria tido a iluminação.

Um símbolo cultural interessantíssimo são as figuras pintadas nas casas para afugentar os maus espíritos.

São atrações os magníficos desfiladeiros, passos, gargantas entre as montanhas dos Himalayas:

Dochu La — 3115m — um marco impressionante de 108 stupas, construidas recentemente pela rainha-mãe para liberar as almas dos soldados mortos na luta contra rebeldes indianos em 2003.

• O primeiro mosteiro de monjas da Ásia. Entre adolescentes e adultas, as monjas estudam, cuidam de todos os afazeres, além de serem exímias artesãs.

A alegria e a simplicidade das jovens monjas são tão envolventes que brincamos juntas ao pé da stupa por inesquecíveis momentos.

Lowa La — 3360m — é o acesso ao vale sagrado de Phobjika, onde assistimos um tradicional festival budista.


Em Thimphu, a capital atual, não há semáforos. Até 1962 nem havia carros de passeio! No Hotel Osel, inaugurado há uma semana, os funcionários se desdobravam em adivinhar os desejos dos hóspedes. Tivemos notícia da construção de dezenas de luxuosos hotéis; infelizmente, uma séria ameaça a este Shangri-La.

De Thimphu voltamos a Paro, com pernoite no tradicional Hotel Olathang, com belos jardins, comida farta e deliciosa. Bem cedinho voaremos pela Druk Air para Kathmandu, Nepal.

Aqui termina essa aventura. Não se passa incólume pela imersão nestas misteriosas terras. Ainda bem!

As diferenças culturais nos fazem rever os conceitos e os pré!! É enriquecedor abrir-se para outros mundos, outras novas idéias, respeitar os costumes e admirar a generosa gente nativa.

PS. Enquanto não for ao Bhutan, vale a pena visitar no Brasil, em Cotia/SP, o belíssimo Templo Zu Lai — Monastério Fo Guang Shan.

Kathmandu — Nepal

O alpinismo, o glamour e as glórias da conquista do Everest são um mundo elitizado muito distante da realidade do gentil povo nepalês.

O Vale de Kathmandu é habitado há mais de 2500 anos. Recebeu imigrantes do Tibet, das planícies do Ganges e da Birmânia. Os nativos são, entre outros, os Newar, uma etnia culturalmente rica que floresceu entre os séculos XII e XVIII. Apesar do número reduzido — menos de 6% da população total — ainda tem grande influência econômica e política, além de conservar sua língua ancestral.

Kathmandu era rota comercial entre Índia/Tibet, permitindo à dinastia Malla investir em arte e cultura, como ainda se pode ver pelos mais de 3000 artísticos templos.

No século XV o vale foi dividido em três principados: Kathmandu, Patan/Lalitpur e Bhaktapur. Essas cidades antigas foram meticulosamente planejadas. Os detalhes urbanos guardavam significado artístico, social e religioso. Muitos símbolos definiam a casta do clan familiar. Outros eram estritamente reservados aos templos.

Em cada uma destas cidades havia — ainda hoje isto se conserva — a Durbar Square, a praça dos palácios, com os templos, as fontes, os bazares e monumentos cuidadosamente entalhados em madeira.

Naqueles bons tempos, uma “bica” jorrando água continuamente, mantido por um sistema de reaproveitamento e coleta dos lençóis subterrâneos, era assegurada a cada família.

As construções newari, de madeira e terracota emboçadas em barro, eram mais resistentes aos terremotos. Hoje, na zona rural, ainda se conserva o costume de misturar à argamassa o esterco de vaca.

A monarquia — absolutista e, mais tarde, parlamentarista — perdurou por 240 anos, quando, em 2008, o Nepal se tornou uma República Democrática Federal. Em 2001, o reino sofreu o duro golpe do massacre da família real, quando o príncipe regente assassinou os pais — o rei Birendra e a rainha Aiswarya — e todos os parentes mais próximos, suicidando-se em seguida.

Kathmandu, Patan e Bhaktapur são, ainda, os principais centros de turismo com 4 milhões de habitantes.
Hoje, a arquitetura decadente, a poeira dos séculos nos desenhos dos templos e sobrados, as ruas muito estreitas, as portas muito baixas para impedir a entrada dos maus espíritos, nos levam a uma incrível viagem a um tempo perdido.
O toque de realidade, além dos gigantescos fios elétricos embolados e dependurados por toda parte, vem das belas nepalesas arrastando saris coloridos e brilhantes pelas ruelas.

A Durbar Square de Kathmandu, onde estamos agora, é um mundo muito rico de histórias, de lutas, de arte, de música envolto em poluição com ruelas sem calçadas, cheias de pó e buracos. Vê-se um povo desnutrido, as crianças pequenas já independentes nas ruas. Às mulheres cabe o trabalho mais pesado de içar a água, de qualidade duvidosa, do poço na praça.

Os cortes de energia são frequentes e diários. Os grandes hotéis tem geradores e não sentimos nenhum desconforto. O transporte público é precário e sem rodovias o fornecimento de víveres é muito complicado e os grandes restaurantes e hotéis cultivam as próprias hortaliças. Apenas 1/4 da população tem acesso a água potável. 63% são analfabetos.

O Himalaya é uma belíssima moldura fora do alcance de quase todos. O guia comentou, entre divertido e irônico: “aqui, a sola do pé já acabou”, ao esclarecer o desinteresse dos nativos de Kathmandu por caminhadas, escaladas e esportes correlatos, pois andam a pé grandes distâncias para trabalhar e tudo o mais.

A visita ao Nepal traz-me reflexões. Aqui, a miséria escancarada em contraste com a riquíssima cultura milenar não me deixa leve nem saltitante. Pelo contrário, assalta-me um tsunami emocional: em volta de templos de ouro, de hotéis de luxo, de esculturas de uma beleza penetrante e de edificações surpreendentes as duríssimas condições de vida são profundamente perturbadoras, sendo impossível ficar indiferente.
Entretanto, ainda em fase de elaboração, a experiência muito forte é, inegavelmente, enriquecedora.

O Ritual da Cremação — Kathmandu

Indefinível a sensação diante da pira incandescente… o corpo é consumido pouco a pouco.

O Templo de Pashupatinath está a 10km do centro de Kathmandu em um parque muito grande cortado pelo rio Bagmati, cujas águas parecem uma massa pesada, escura e lenta. Aqui a divindade Shiva teria repousado e “Pashupati” significa “o senhor e protetor de todos os seres vivos”. À entrada é cobrado, justificadamente, um ingresso dos turistas e bancas de todo o tipo de artesanato tem a oportunidade de bons negócios em um dos países mais pobres do mundo.

Pashupati tem centenas de templos, santuários e edificações, tudo muito antigo. Entre estas, visitamos um asilo onde os velhos sem família são levados para aguardar a morte e a cremação ali bem pertinho.

No alto, o templo principal de Pashupatinath, com a cúpula em ouro, é um dos maiores do Nepal.

No interior, vimos de longe o gigantesco boi Nandi, que teria sido a montaria de Shiva. Só é permitida a entrada de hinduístas.

É inusitado, no portal do templo, um modernoso display com informações em nepalês e inglês.

A plataforma de cremação tem degraus até o rio, onde se lavam os pés do morto e as famílias se aspergem. Os ricos são cremados na parte superior do rio. Há algum tempo, a pira dos ricos era de sândalo, uma madeira perfumada; como está quase extinta, hoje coloca-se apenas uma pequena tora.

Os sadhus — uns homens seminus, cabelos aos metros, faces coloridas e corpos cobertos de cinzas — estão em toda parte e sobrevivem posando para os turistas. Dizem as boas línguas que são “sadhus para turista”; os verdadeiros, sim existem, estão em cavernas distantes em jejum e meditação.

A gente assiste, esbugalhados, a preparação da pira, o ritual de envolver o morto em lençóis brancos e laranja. Na boca se coloca um pavio de cânfora e manteiga, onde se acende a chama, pois pela boca começa e termina a vida. Significativo é o “leito” formado sobre as toras para aconchegar o corpo coberto de palha; não se usa líquido inflamável.

Toda a cerimônia é envolta numa atmosfera de respeito e silêncio.
O restante das cinzas e todos os resíduos são lançados ao rio. Ali, crianças e mulheres recolhem as sobras de madeira e possíveis moedas, anéis, brincos no rescaldo.

Mais abaixo no rio, custei a acreditar ao ver — e conferir! — duas mulheres recolherem os restos de um tronco humano.