Gerace, Stilo, Santa Severina — estes burgos quase intocados, perdidos no sul da Itália, são muito especiais. Na Calábria, a costa belíssima é banhada pelos mares Tirreno e Ionio.
Por aqui passaram gregos — Magna Grécia — romanos, suábios, aragoneses, normandos; daí a diversidade em cada canto. A estrada serpenteia à beira de plantação de olivas, de cedros e da adorável bergamota: uma mistura de limão e laranja azeda que se multiplica em chás, doces, licores. Da casca se extrai o óleo essencial para perfumes, principalmente Eau de Cologne, lançado na Alemanha no século XVIII.
Numa volta surge, lá em cima, Santa Severina, apelidada “la Nave de Pietra”:
O vilarejo exibe o estilo bizantino cujo império permaneceu até 1076.
O batistério do século VII:
Entre as curvas de uma estradinha, uma apetitosa surpresa: Azienda Agrituristica Le Puzelle. O jovem empreendedor, Sergio, parece estar totalmente envolvido com o próspero negócio da família. Já morou no Brasil, tem pousada em Florianópolis.
Quer desenvolver o agro-turismo, aproveitando a falta de transporte regular na região e a distância dos grandes centros como um atrativo. O turismo em massa traz, sabidamente, desvantagens a longo prazo. Vale descobrir todas as delícias italianas e o melhor cappuccino… do mundo!
No sul da Itália — “calcanhar da bota” — a intrigante cidadinha de Alberobello com as torres de pedra. Trulli, plural de trullo, vem do grego, significa cúpula.
Antigamente, essas engenhosas construções de pedras calcárias, empilhadas sem argamassa, abrigavam os camponeses durante a colheita de azeitonas. Com destreza, os trulli eram desmanchados e reconstruídos rapidamente. Assim, os coletores de impostos do rei de Napoli eram enganados: deparavam com montes de pedras sobre as quais não incidia cobrança. Às costas dos fiscais os trulli eram reerguidos.
A região de Alberobello, a 55km de Bari, é solo fértil para a plantação de oliveiras muito elegantes… …e idade de Matusalém.
As oliveiras — a planta macho — são em número bem menor; então, planta-se uma oliveira macho e em volta uma dezena de oliveiras fêmeas para facilitar a polinização.
A habitação em trulli remonta a mil anos. O formato em cone é apropriado para a coleta de água de chuva em cisternas. O interior se mantém fresco e agradável. O centro antigo é recortado por escadarias, ruelas e lojinhas.
Excelentes hotéis e restaurantes modernos em estilo trulli:
Diante destes imponderáveis trulli fica patente o poder criativo dessa gente campesina em transformar inóspitas pedras em abrigo. Alberobello é mais uma grata surpresa por estas antiquíssimas bandas italianas.
Um lugar muito diferente surgiu lá no alto! Chegamos a uma praça com o piso claro e brilhoso, torres, balcões, escadarias… tudo de pedra. Nem sempre escolhemos roteiros em detalhes; ver fotos antecipadamente, nem pensar. A recompensa é a sensação indescritível desta surpresa: Matera.
Nunca ouvíramos sobre a cidade dos Sassi — pedras em italiano — situada em Basilicata, no “tornozelo” da bota a 70km de Bari, habitada há mais de 12 mil anos. Os Sassi são cavernas habitadas desde o período paleolítico e se dividem em Sasso Caveoso e Sasso Barisano.
Antigamente, as condições de vida nos Sassi eram miseráveis: doenças, sujeira, absoluta falta de higiene. Em 1944 o escritor Carlo Levi denunciou ao mundo, no livro Christ Stopped at Eboli, os horrores de um inferno de Dante. Há um filme com o mesmo título, de 1979; o significado é de o cristianismo e a civilização jamais terem ido além da cidade de Eboli, onde viviam os excluídos pela pobreza.
Nas décadas de 1950 e 60 os Sassi foram considerados um insulto à República daí, depois de planos, projetos e reviravoltas, iniciaram a evacuação, restauração e o saneamento — década de 1990. Inevitável, nestes casos, o dramático impacto da mudança, a perda de laços afetivos e as dificuldades de adaptação. Contudo o saldo é altamente positivo: as cavernas revitalizadas são um centro cultural efervescente com museus, artes e desenvolvimento.
Em Matera foi filmado, entre outros clássicos, A Paixão de Cristo de Mel Gibson. A cidadinha já recebe 600 mil visitantes por ano. As cavernas abrigam, com conforto, bons restaurantes, hotéis…
Aqui os Alpes ficam aos pés da cama… não, não é exagero. Ao acordar, esta montanha maciça enche-nos os olhos.
É a primeira imagem de Grindelwald. Nesta época, início de primavera, fora de temporada de esqui, muitos hotéis se fecham e a cidadinha se oferece, principalmente, para turistas asiáticos.
O roteiro é muito bem organizado pelo Switzerland Travel Centre a partir de Zürich, banhada pelo rio Limmat, às margens do lago Zürichsee.
O Hotel Wellenberg em Zürich é central, atendimento perfeito. Na universidade — fundada em 1833 — uma das mais avançadas da Europa, o Museu de Zoologia é espetacular. Este exemplar de preguiça gigante, um animal pacífico, viveu nas Américas há 20 mil anos.
Aqui, a criançada tem a oportunidade única de alargar a mente, de descobrir os próprios talentos. O restaurante universitário é de alto nível. O campus é um jardim só:
A rota inicial: Zürich / Luzern / Giswil / Interlaken Ost / Grindelwald em trens panorâmicos. Não se pode cometer a heresia de descrever fotos ou paisagens; estas, no real, são absorvidas pelos poros ou reduzidas a selfies.
Em Grindelwald o Hotel Eiger Selfness é um village, com jardins internos, estrutura completa de fitness, sauna e spa. Aqui é o embarque no trem amarelo para Jungfraujoch, um passo elevado entre os montes Mönch e Jungfrau. A cremalheira nos trilhos foi especialmente projetada para trechos íngremes.
Alcança-se o topo em 78 minutos. Através de um túnel chega-se a um edifício gigantesco embutido na rocha com restaurantes, exposições, lojas, histórico da dificílima construção — 1896 a 1912 — e um palácio de gelo.
Jungfraujoch é, mesmo, inimaginável para nós dos trópicos…
Numa bifurcação do Rhône, Arles — no sul da França — é a porta de Camargue: uma região muito rica em biodiversidade, escolhida pelos flamingos e morada dos intrigantes touros negros. Ao anoitecer, aportamos neste canal do rio, protegido por muralhas.
Neste canal havia uma ponte espetacular destruída na Segunda Guerra; restaram dois pilares e, relembrando a grandeza da obra, pares de leões em cada margem:
Arles, nos séculos IV e V, foi um grande centro cultural e comercial; ocupada por diferentes povos, até que os romanos fincaram pé e permaneceram por mais de 800 anos. Daí as características construções bem conservadas até hoje. Claro, um magnífico coliseu faz parte do currículo do império romano:
Aqui o passado volta com o clamor da turba, o rugido dos leões. Agora realizam-se festivais. Felizmente, nas touradas atuais, não se matam os touros; ágeis atletas tentam retirar as fitas dos chifres em uma arena civilizada.
Ouvir o caloroso ritmo cubano num boteco da esquina em meio às ruínas romanas significa convívio saudável; aproximamo-nos e gente de todas as cores dançava alegremente.
Como sempre, perambular sem rumo é o melhor destino. Arles, especialmente, é uma caixa de surpresas.
Constantino I, o Augusto romano, construiu as excelentes termas. Os banhos, com a incrível idéia dos hipocaustos, foram outra característica do savoir vivre dos romanos:
Arles, com uma história forte, é uma interrogação…
Avignon é mesmo um cenário de filme. Dentro das muralhas todas as tragédias e grandezas das histórias humanas. É uma das cidades mais antigas de França.
A corte papal se estabeleceu aqui devido às ingresias entre o papado e a coroa francesa. Em 1305, o rei Philippe IV forçou a eleição de Clemente V, que recusou mudar-se para Roma, devastada por lutas internas. A partir de então, seis outros papas reinaram aqui. As divergências se agravaram até o Grande Cisma na igreja católica: isto é, por quarenta anos, houve um papa em Roma e outro em Avignon. Esta situação anômala terminou por volta de 1417. Este período dos pontífices favoreceu o desenvolvimento arquitetônico e das artes em geral. O magnífico Palais des Papes é o mais importante em estilo gótico desde a idade média.
O navio se aproxima bem devagar da Pont Saint-Bénézet sobre o rio Rhône. Originalmente com 900m e 22 arcos, foi destruída em 1226 durante uma ocupação; após a reconstrução foi levada algumas vezes pelas enchentes. Hoje restam apenas os românticos quatro arcos. Sur le Pont d’Avignon é a canção, há séculos, desta simbólica ponte.
Ao perambular pelas ruelas…
O centro antigo se transforma para nós em uma “ilha” com queijos, flores, boas risadas e imaginação à solta… assim, Ricardo Reis salta do livro (“O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de José Saramago) e vem nos acompanhar sem rumo e sem destino. Do personagem a lucidez:
Solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós.
O navio Swiss Gloria seguiu de Tournon-sur-Rhône para Le Pouzin, de onde fomos para Ardèche. Escondida em uma esquina do rio Rhône e dos Alpes esta região de montanhas de pedras: dessa vizinhança vem toda a beleza. Considerada área remota, com montes ondulados e verdes, lembra a belíssima Serra do Espinhaço.
O império romano dominou toda a Europa, sendo impressionante o avanço das construções nestas vilas seculares que preservam relíquias como este aqueduto:
O romântico rio Ardèche brinca formando cânions, grutas e paredões sem fim. É o preferido para os passeios e competições de caiaques:
O Pont d’Arc é um capricho especial por onde rolam as águas cristalinas e frias:
Já neste começo de primavera é a “praia de verão”:
Surpreendente La Grotte Chauvet-Pont d’Arc. Em 1994 foi redescoberta depois mais de 30 mil anos obstruída por uma avalanche. Esta gruta é riquíssima em pinturas rupestres, estalagmites e estalactites. A visitação iria destruir este patrimônio inestimável, daí a inusitada construção de uma réplica perfeita, incluindo a reprodução das pinturas rupestres.
O homem, quando sai de suas concepções estreitas, pode criar o impossível, o belo!
A pequena cidade, a 30km de Chalon-sur-Saône, guarda uma surpresa: L’Hôtel-Dieu. Este elegante hospital beneficiente foi construído por Nicolas Rolin, com a participação fundamental da mulher, Guigone de Salins, em 1443. O hospital foi dirigido também por jovens freiras, cujo mister era cuidar dos pobres.
Era costume de os católicos ricos receberem as tais Indulgências! Faziam doações de bens, dinheiro, construíam hospitais e igrejas em troca do perdão dos pecados. Através desta “santa propina” os benefícios amenizaram o sofrimento de muita gente. Desde então, a família de Nicolas Rolin mantém os hospitais mais avançados da França, além de rede hoteleira.
O hospital, já muito avançado no séc.XV, funcionou até 1970, quando se transformou em museu. Os equipamentos e instrumentos cirúrgicos eram de ponta. Foi um dos primeiros hospitais a utilizar os raios-X descobertos em 1890 por Wilhelm Röntgen. O brilhante físico alemão, agraciado com o Nobel de Física em 1901, doou o prêmio à universidade de Würzburg, recusando-se a registrar qualquer patente.
O progresso técnico pode ser visto na Pharmacie:
Na cozinha:
A enfermaria com leitos compartilhados por apenas dois doentes era um alto luxo:
Um bom exemplo de filantropia, ainda hoje em Beaune, são os leilões dos melhores vinhos com compradores de todo o mundo.
O Hôtel-Dieu tem um considerável acervo de arte. A extensa e incrível tapeçaria é um conjunto de painéis bordados por artistas anônimos. Um detalhe do cavalo cuja pata é recuperada depois de uma amputação, num lendário milagre de Santo Elígio:
Aos portões do céu e do inferno se encaminham os abençoados e os condenados. Para nós, absolutamente sem viés religioso, as imagens eloquentes representam a saga humana desde sempre: cada um traz, dentro de si, o céu e o inferno.
É uma antiquíssima região da França, cheia de histórias, castelos, trilhas, arte e vinhedos cultivados, ao longo dos séculos, por dedicados monges. O navio Swiss Gloria pernoitou em Chalon-sur-Saône, às margens do rio Saône.
Sob o céu muito claro de primavera desta manhã, subimos para Beaune, uma cidadezinha muito elegante, a capital dos vinhos da Borgonha, principalmente os brancos secos Chardonnay, considerados os melhores do mundo. Por aqui, uma refeição sem vinho é impensável.
A lição do amável sommelier do Cellier de la Cabiote pode ser resumida assim:
• fora da França, os rótulos, em geral, indicam o tipo de uva: Cabernet Sauvignon, Pinot Noir, Carmenère…;
• já os rótulos franceses indicam a região de envasamento: Bourgogne, Beaujolais, Rhône, Bordeaux, Loire, etc.;
• quanto mais específicas as informações constantes do rótulo, melhor e mais caro o vinho. Por exemplo, o rótulo deste Corton-Charlemagne Grand Cru Cuvée François de Salins especifica a região de Bourgogne, a cidade de Beaune, o vinhedo Hospices de Beaune, o terroir Charlemagne e o envasador Albert Bichot. No rótulo de um vinho vinte vezes mais barato só constaria, vagamente, “Mis en bouteille dans Bourgogne“.
Agora, a deliciosa pausa para degustação:
Por aqui também, diz o sommelier, é raro tomar vinho fora das refeições. Para isto, o cardápio do Swiss Gloria, além da boa apresentação, é muito saboroso e convida o vinho de Beaune.
Em Beaune, o lembrete de Kurt Tucholsky: “há pessoas que temos de entendê-las para amá-las; outras teremos de amá-las para entendê-las”!
De Lyon, importante porto francês, o Swiss Gloria zarpou para Mâcon, região vinífera do Beaujolais. Dizem por aqui: “Em Lyon vertem três rios: Le Rhône, La Saône e… Beaujolais”. A 25km, a Abadia de Cluny é um monumento espetacular de cultura, ciência e tragédia. Desta maquete do complexo beneditino, infelizmente, resta uma pequena parte.
A Abbaye de Cluny iluminou o mundo ocidental por séculos. Os abades eram muito influentes, interlocutores diretos do Papa; entre os monges, quatro foram eleitos Pontífices e outros, canonizados. A sede da maior congregação beneditina é — sim, ainda hoje — uma saga arrojada de desenvolvimento e grandeza. Tem-se a impressão de viver as páginas de um livro, as cenas de um filme:
— Cluny I, 910-927. A modesta e inicial edificaçãoincluía vinhedos, riachos e moinhos.
— Cluny II, 961-981. As exigências da liturgia e do progresso trouxeram a ampliação da edificação e, principalmente, a primeira igreja com altar em níveis.
— Cluny III, 1080-1130. Atingiu o ápice de magnificência. A catedral de Saint Pierre et Saint Paul, com 187m de comprimento, mais de 30m de altura e torres com 56m foi, por séculos, a maior do ocidente.
— Revolução Francesa, 1798-1808. A perseguição político-religiosa levou à demolição com imensuráveis prejuízos econômicos e culturais. Foi iniciada pela revolução e arrematada pela ignorância de Napoleão Bonaparte. Esta é uma coluna de uma das cinco naves da catedral:
Pode-se avaliar a grandeza de Cluny pelas partes ainda de pé:
Sempre majestosa e imponente, Cluny continua uma fonte inesgotável de história e espanto. Caminhantes passam por aqui em direção a Santiago de Compostela. Esta torre na muralha norte foi construída em torno de 1300:
É impressionante a visão arquitetônica destes beneditinos:
Estes dormitórios construídos antes da Revolução Francesa foram muito pouco utilizados:
Os beneditinos competentes e cultos desenvolveram a ciência, a educação, as artes; produziram vinhos com excelência; alcançaram alto nível de bem-estar e riqueza; isso, certamente, provocou dissidências políticas. Os conflitos internos foram especialmente com os cistercienses.
O arqueólogo Alexandre Lenoir alertou bravamente sobre a loucura e prejuízos da demolição. Foi uma voz clamando no deserto…
As esculturas, as edificações, as obras literárias, musicais e artísticas são atemporais; estão muito acima de qualquer ideologia. Representam a cultura de toda a humanidade. Por isto, deveriam ser intocáveis por mentes radicais, obscuras e partidárias. Contudo a mesma catástrofe se deu no Afeganistão, com a destruição dos Budas milenares de Bamiyan.
Aqui nos jardins de Cluny, indiferentes às mazelas humanas, as tulipas são uma festa e uma promessa de primavera. Em qualquer beiradinha brotam como capim…