Frei Betto

Oração do Pássaro

Senhor,
Torna-me louco, irremediavelmente louco
Como os poetas sem palavras para os seus poemas
As mulheres possuídas pelo amor proibido
Os suicidas repletos de coragem perante o medo de viver
Os amantes que fazem do corpo a explosão da alma.

Dai-me, Senhor, o dom fascinante da loucura
Impregnado na face miserável do pobre de Assis
Contado nos filmes dionisíacos de Fellini
Resplandecentes nas telas policrômicas de van Gogh
Presente na luta inglória de Lampião.

Quero a loucura explosiva, sem amargura
Da razão ética das pessoas saciadas à noite pela TV
Da satisfação dos funcionários fabricantes de relatórios
Dos deveres dos padres vazios de amor
Dos discursos políticos cegos do futuro.

Fazei de mim, Senhor, um louco
Embriagado pelo vosso amor
Marginalizado do rol dos homens sérios
Para poder aprender a ciência do povo
Em núpcias com a cruz que só a fé entende
Como um louco a outro louco.

O Fogo

inquieto, espero
para olhar
teu olhar

ver nele o mesmo incêndio noturno
a dança
de brasas flutuantes

temo
que o fogo falhe
e não se espalhe
espoucando pelo bambuzal.

E seja tudo, novamente, natural.

©Copyright 1997 Nelson Vaz (do livreto “Lado Alado”, Coleção Poesia Orbital)

Ano Novo

ano novo?
novo apenas o ovo…
tudo o mais
está manchado
está corroído
está moído

novo apenas o ovo…
tudo o mais
está gasto
está sujo
está podre
está roto… o odre

Copyright©2011 Maria Brockerhoff

Microcontos (140 caracteres)

As crianças são terreno fértil; recebem indiscriminadamente presentes, honras, mercês, agrados, lisonjas, exceto limites. Crescem ditadores.

Guarda-velhos: clínicas onde filhos depositam os pais. Espoliados da esperança e sugados pela ambição. Juízes cúmplices concedem interdição.

O preso cabisbaixo. Policiais enxotaram todos do velório. Silêncio de pedra. Mãos algemadas às costas. O rapaz roçou o rosto na face da mãe.

Copyright©2010 Maria Brockerhoff

Haicai – poema japonês

Haikai, haiku ou haicai é uma forma de canto; é aparentemente simples mas profundo, delicioso.

Ressalvadas as diferenças semânticas e a tradução, o poema japonês — adaptado, claro, a cada cultura — é um lampejo, uma forma de meditação, capta o silêncio, o efêmero, o eterno…

Numa linguagem depurada, o haicai não explica, flui.

Suas origens são muito antigas, provém do tanka, do renga, uma sequência de estrofes. O grande Bashō (1644-1694) é o mestre desta arte; de seu discípulo Issa (1763-1826):

Crisântemos florescem
junto ao monte de estrume
uma só paisagem

O haicai sempre teve 17 sílabas ou sons — 5, 7, 5 — diz o máximo em 3 linhas; não é provérbio ou “pensamento”; pode ser ironia, introspecção, humor, sempre traz um “encanto intraduzível” (conforme Afrânio Peixoto, 1919) ou, como bem definiu Paulo Franchetti, “com o mínimo obtém-se o suficiente”.

Osório Dutra (1889-1968) afirmou que a poesia do Japão era pobre e o haicai fruto desta pobreza… estariam verdes as uvas…?

Importante mesmo é saborear o haicai dos bons autores:

Borrão azul
na brancura da página
o poema
Albano Martins, 1930

Festa das flores
acompanhando a mãe
uma criança cega
Herberto Helder, 1930

As flores tantas
o outono
nem sabe a quantas
Paulo Leminski, 1983

Tem cautela
ajuda o sol
com uma vela
Millôr Fernandes

O pato, menina
é um animal
com buzina
Millôr Fernandes

A chuva

Para Heloísa…

Finalmente
na madrugada
a chuva pesada!

lavou a carência
da terra rachada

levou a poeira
limpou a cumieira

entumesceu as raízes
renovou os matizes

forte e com jeito
encharca o vale
seco do peito

Copyright©2010 Maria Brockerhoff

Oásis

…avenida Pedro II, trânsito lento, casario feio, passeios cheios de lixo; à direita, avenida Bias Fortes; o viaduto enegrecido completa a paisagem desolada da cidade grande.

Logo depois da esquina, uma massa dourada à direita, um oásis de flores amarelas, algumas pétalas esvoaçando…
    a rua se iluminou
    a feiura sumiu
    os cachos coloridos penetram a retina
    um fio de esperança desponta.

Este Ipê magnífico, como o são todas as árvores, recebe em troca as queimadas, as serras elétricas e a derrubada para os blocos de cimento disfarçados em áreas de “lazer” e em espaços “gourmet”.

Oh! humanidade desvairada…
    Que venha o outro dilúvio!

A Cabana

Penso ser preocupante este livro, de W. P. Young, ocupar o primeiro lugar em vendas na última semana na lista da Livraria Leitura.

Certamente o marketing de promoção do tal é o melhor do mundo! Conseguiu uma vendagem extraordinária para um livro medíocre. Há tantos livros nacionais mais úteis, mais divertidos e substanciosos.

A Cabana foi reescrita quatro vezes antes de ser recusada por 26 editoras. Finalmente, dois produtores de cinema criaram uma editora e, então, publicaram o barraco (ops!).

A primeira parte tem enredo razoável, mas o desenrolar da visita ao casebre é piegas; o consolo é uma sequência de chavões e duvidosas respostas de cunho religioso; a solução do crime é um mix de revelação sobrenatural, adivinhação e muitas coincidências… inclusive a conservação de indícios por um tempo longo.

Há quem diga que é um livro “para os sofredores”; gosto não se discute… lamenta-se.

Outros o indicam como auto-ajuda, parece ser este o grande lance marqueteiro: o livro trará a receita para todos os males da tristezas…

Para as Erínias, o sofrimento, às vezes, é inevitável, mas o masoquismo é opcional!

Os bons livros de “auto-ajuda” são os de Amyr Klink, família Schürmann, Oliver Sacks, Guimarães Rosa, João Ubaldo Ribeiro, Arnaldo Jabor, Isabel Allende e outros maravilhosos! 😉

São depoimentos corajosos e inspiradores, idéias inteligentes; pessoas que escolheram o próprio caminho e assumiram as responsabilidades.

Este livro é puramente comercial; nisto foram muitos bons; inclusive criaram um site de relacionamento com “Missy”, a personagem desaparecida… …argh!