Gangtok — Capital de Sikkim, Índia

A cidade, com a sua gente cordial e hospitaleira, é o ponto de partida para paisagens incomuns e mosteiros milenares. É uma importante referência para os estudiosos do Budismo tibetano.

O caminho para Gangtok — através de Pelling e Yuksom — é uma subida, uma subida verde, exuberante dos Himalayas. A vista é uma escada gigante com muitos telhados e o verde cristalino das plantações de arroz nos degraus. As águas-turquesa do Rio Rimbi lutam bravamente com as pedras enormes nas passagens estreitas. As pontes suspensas — quase pinguelas — onde, às vezes, passa apenas uma pessoa, acrescentam mais uma pitada pitoresca à natureza.

É curioso ver bando de crianças bem pequenas com os uniformes arrumadinhos, desacompanhadas de adultos, percorrendo longas distâncias a caminho da escola. As crianças da região são autosuficientes — uma diferença enorme das do lado de cá! — correndo pela rua, desviando-se dos bichos e dos veículos com a esperteza lhes transmitida pela vida difícil. Vimos grupos de jovens de idades variadas também de uniformes, bom sinal! Não há transporte público, todo o mundo anda a pé.

Também, curioso o trabalho pesado de quebrar pedras, sem proteção alguma, a cargo das mulheres. Vimos dezenas delas encarapitadas em montes de estilhaços, com os quais se recompõem as estradas. Curiosíssima a manobra da pá amarrada a uma corda, feita por dois trabalhadores. Um deles pega o cimento ou areia com a pá e um outro puxa na corda para ajudar no movimento. Se a moda pega por aqui…

Pernoitamos em Pelling, no Mount Pandim, um agradável hotel com inacreditável vista para o Kanchenjunga! Daqui para Yuksom há, em todas as cercas, extensíssimos pés de chuchu, enormes e velhíssimas mangueiras — exóticas novidades para os turistas alemães. As açucenas são um escândalo em beleza e cor.

Gangtok é antiga, com 100 mil habitantes amontoados em sobrados morro acima. Aqui está começando uma campanha para coleta de lixo e limpeza de ruelas, quintais e praças. O quarteirão fechado para pedestres, com lojas e cafés, é limpo; mas em geral há lixo por toda parte. Isto encerra uma interessante questão cultural: há anos, os nepalis e os nativos lepcha e bhutia jogavam fora folhas, palhas, cascas, sementes. Além disso, os bichos, ao devorarem os restos, faziam a limpeza. Com a “modernidade” vieram os plásticos, as latas, papéis alumínio, isopor, etc. etc. e o povo continua atirando tudo pela janela, como se ainda fosse degradável. É um problema seríssimo, como no Brasil também, infelizmente.

Em muitos pontos há painéis sobre o tratamento da Hanseníase, ressaltando não ser a doença hereditária, nem pecado ou maldição.

O Hotel Nor-Khill é um antigo palácio de verão do rei Namgyal, com belos jardins, boa comida apimentada e a tradicional cerveja chaang. Daqui vimos, também, um estádio no qual se desenrolava uma animada “pelada”. O futebol parece popular; muita gente veio nos consolar pelo escabroso 7×1 na última copa…

Neste hotel, ainda se serve o tradicional five-o’clock tea; o tal “chá inglês” tem origem prosaica. Foi o jeito de a Duquesa de Bedford acalmar o vazio do estômago, já que em meados do Séc. XIX o jantar era muito tarde. Assim, enganava-se com um chá Darjeeling por volta das 17:00; aos poucos, os famosos scones ou bolinhos ingleses vieram para a mesa. Não ficava bem a uma duquesa comer a sós, assim convidou algumas amigas também famintas e… ao longo do tempo virou o chá das cinco!

Gangtok não é uma cidade bonita; a gente tem excelentes motivos para vir:

  • Pemayangtse, um dos mais antigos mosteiros, a 2085m de altitude. Fui seguindo um som harmonioso e envolvente pelas escadas acima chegando — uau! — a um amplo salão onde uns 20 jovens, dois bem mais novos, entoavam os textos tibetanos. Sentei-me junto a eles, que disfarçaram o riso pela minha falta de jeito na cerimônia. O ambiente leve é aberto a todos. O acolhimento é espontâneo; a alegria dos jovens noviços é invejável; não queria sair de lá. Tais momentos trazem uma sensação muito boa de completude!
  • Dubdi-Gompa, um outro belíssimo mosteiro. O sinuoso caminho coberto de musgo já compensa a subida forte.
  • Rumtek é um dos mais importantes centros de estudo budistas da Ásia. É muito grande, imponente e colorido. Os monges lavavam, alegremente sob a chuva, o pátio enorme. Usam xilogravura de antigos textos tibetanos com matrizes de madeira, uma arte do Séc. XIV.
  • O Instituto de Tibetologia é magnífico, guarda preciosos manuscritos em sânscrito e os painéis em seda, pintados à mão, relatam toda a vida de Siddarta Gautama, o Buda.

Através de Gangtok chega-se a Nathu La Pass, um corredor de passagem entre Índia e Tibet, fechado em 1962. A antiga Rota da Seda, reaberta em 2006, é a mais alta estrada para veículos motorizados: 4.310m. Estrangeiros não tem autorização para percorrê-la.

Despedimo-nos de Sikkim e rumamos para o Bhutan, o reino do dragão.

Sikkim — o Paraíso dos Andarilhos

A cadeia de montanhas oferece caminhadas de 280m a 8586m de altitude, onde se alcança o pico Kanchenjunga: “Os Cinco Tesouros das Neves”. É o paraíso dos trekkers. Cada um pode escolher o nível de desafio aos deuses do Himalaya.

Yuksom ou Yuksam, significa “lugar de encontro dos sábios”, é hoje um pequeno e pobre vilarejo. Foi a capital de Sikkim de 1641 a 1670. Neste lugar, três Lamas tibetanos escolheram o monarca dos Bhutia, a etnia predominante, de natureza dócil. O rei recebeu o título de Chogyal, i.é, rei virtuoso, e a dinastia o de Namgyal, que reinou até 1975, quando Sikkim foi anexado à Índia, como 22º estado.
Os Lamas coroaram o Chogyal em um trono de pedra, ainda hoje atração para turistas e peregrinos.

Yuksom é o portão de entrada para os picos nobres, incluindo o Kanchenjunga, a morada da deusa Dzo-nga. Daqui partem excursões durante todo o ano pelas trilhas de rododendros, pinheiros, abetos, pastos de yaks, rios, lagos e cachoeiras. Entre estas a espetacular queda da pedreira do Khangchendzonga. Aqui, apenas um detalhe:

Khecheopalri é o lago sagrado entre Yuksom e Pelling. Tem o formato de um pé gigantesco. Está bem escondido, é uma surpresa no fim da trilha. Aqui, o agradável corredor ladeado de rodas de oração nos leva à margem. Segundo uma lenda, os pássaros recolhem as folhas que caem na superfície. Realmente é um espelho verde cintilante. Dizem, também, ser o Lago dos Desejos — contemplar suas águas os transformarão em realidade… fique atento!

O Kathok é o irmão menor do Khecheopalri. Curtimos lá um piquenique! Às margens dos lagos, centenas de bandeiras, rodas de oração e de sinos. Para a tradição tibetana são mensagens e sons de compaixão, de sabedoria e de paz levados pelo vento…

Os aventureiros mais bem preparados e audaciosos atacam o Goecha-La, a 4950m. É uma trilha duríssima, com temperaturas muito baixas. Quem consegue chegar lá se diz recompensado com a vista inigualável e espetacular do Kamchenjunga.

Um dos vencedores é o indiano George Thengummoottil. Ele teve, desde criança, seríssimos problemas de visão. A médica preferiu concluir que eram invencionices. Sofreu muito e, mais tarde, veio o diagnóstico: ceratocone, uma doença degenerativa incurável na córnea dos dois olhos… as imagens, as pessoas, a vida, tudo se transforma em borrões!

O ceratocone oferece as alternativas de perda de emprego, perda de esperança e até perda de vida. George escolheu outra bem diferente: luta com o ceratocone viajando pela Índia, alcançando os pontos mais altos do Himalaya. No seu blog, podemos até “ouvir” o brado:

Yes, I did it!

quando documentou a árdua subida do Goecha-La neste filme premiado:

Andanças — Sikkim, Himalaya

A cerveja típica é a Chhaang ou Tongba. Uma mistura de milhete ou cevada despejada num tubo alto de bambu. Aos poucos, acrescenta-se água quente para absorver o gosto. Degustada lentamente por um canudo, também de bambu, é exótica, elegante e deliciosa!

A magnífica região de Sikkim esconde-se no Himalaya entre Nepal, Tibet e Bhutan, protegida pelo imponente Khangchendzonga.  É a terra dos rododendros inigualáveis — principalmente em Barsey — orquídeas selvagens, picos nevados — o terceiro mais alto do mundo — rios cor de turquesa, majestosas cachoeiras, lagos sagrados, florestas de magnólias, bambus, pássaros raros e milenares mosteiros. Sikkim conversou-se intocada por séculos. Aqui é o lugar onde a terra e o céu se encontram, abençoado pelos lamas tibetanos. O seu povo de natureza dócil é descendente das etnias Lepcha, Limba e Buthia.

O reino de Sikkim passou por períodos turbulentos com invasões dos nepaleses, bhutaneses e a guerra Gurkha/Gorkha em 1841. Isto sem contar as intervenções do império britânico, quase sempre desfavoráveis às colônias e à vizinhança.

A história recente relata fatos que culminariam na desejada anexação de Sikkim — até então um país independente — pela Índia. A versão oficial é a do plebiscito de 1975 favorável à anexação; assim, o belo reino de Sikkim tornou-se o 22º estado indiano. Contudo, a versão do povo e dos jornais da época é bem diferente.

A consulta popular, através de plebiscito, foi organizada a toque de caixa. O resultado favorável à anexação — 97.5% (!) — é duvidoso, segundo fontes históricas e jornalísticas. O livro do conceituado jornalista Sunanda K. Datta-Ray — Smash And Grab — descrevendo este processo de anexação foi banido da Índia. O governo de Indira Gandhi teria manipulado a opinião pública, explorando a divisão étnica entre nepaleses e os nativos, desmoralizando a monarquia e, o mais grave, fraudando o plebiscito!

Entre as reviravoltas políticas, o romance entre o príncipe viúvo P. T. Namgyal, futuro rei/Chogyal, e a jovem americana Hope Cooke é um autêntico conto de fadas.
Eles se conheceram em Darjeeling no exclusivo e elegante Windamere Hotel em 1959, numas férias de verão de Hope. A solidão na infância de ambos os atraiu fortemente.

Hope ficou órfã aos 2 anos. Cresceu com os avós. Gente muito rica mas indiferente e sem calor afetivo. Estudou em bons colégios, é uma pessoa afável e interessante. Escreveu recentemente a autobiografia Time Change.

Casaram-se em 1963 num mosteiro real em Gangtok, sob as bençãos de 14 Lamas. A noiva, com um vestido de seda de Benares, um cinto de ouro com uma adaga e demais acessórios de pedras preciosas, percorreu o templo sob o som de trombetas tibetanas, toque de címbalos e cantochão dos Lamas.

A jovem rainha se interessou pela cultura do país, envolveu-se em programas educativos, melhorando a condição das crianças em idade escolar. Eles foram muito felizes… mas o conto de fadas não resistiu aos sérios problemas políticos. Com a anexação, o rei foi deposto e Hope voltou aos Estados Unidos com os filhos, onde mora até hoje. O 12º e último rei de Sikkim morreu com câncer em 1982, finalizando uma auspiciosa dinastia iniciada em 1642.

Este retorno ao passado é ao redor do Chhaang saboroso, aqui em Gangtok, a capital, nosso próximo post.