Frei Betto

Oração do Pássaro

Senhor,
Torna-me louco, irremediavelmente louco
Como os poetas sem palavras para os seus poemas
As mulheres possuídas pelo amor proibido
Os suicidas repletos de coragem perante o medo de viver
Os amantes que fazem do corpo a explosão da alma.

Dai-me, Senhor, o dom fascinante da loucura
Impregnado na face miserável do pobre de Assis
Contado nos filmes dionisíacos de Fellini
Resplandecentes nas telas policrômicas de van Gogh
Presente na luta inglória de Lampião.

Quero a loucura explosiva, sem amargura
Da razão ética das pessoas saciadas à noite pela TV
Da satisfação dos funcionários fabricantes de relatórios
Dos deveres dos padres vazios de amor
Dos discursos políticos cegos do futuro.

Fazei de mim, Senhor, um louco
Embriagado pelo vosso amor
Marginalizado do rol dos homens sérios
Para poder aprender a ciência do povo
Em núpcias com a cruz que só a fé entende
Como um louco a outro louco.

O Fogo

inquieto, espero
para olhar
teu olhar

ver nele o mesmo incêndio noturno
a dança
de brasas flutuantes

temo
que o fogo falhe
e não se espalhe
espoucando pelo bambuzal.

E seja tudo, novamente, natural.

©Copyright 1997 Nelson Vaz (do livreto “Lado Alado”, Coleção Poesia Orbital)

Ano Novo

ano novo?
novo apenas o ovo…
tudo o mais
está manchado
está corroído
está moído

novo apenas o ovo…
tudo o mais
está gasto
está sujo
está podre
está roto… o odre

Copyright©2011 Maria Brockerhoff

Haicai – poema japonês

Haikai, haiku ou haicai é uma forma de canto; é aparentemente simples mas profundo, delicioso.

Ressalvadas as diferenças semânticas e a tradução, o poema japonês — adaptado, claro, a cada cultura — é um lampejo, uma forma de meditação, capta o silêncio, o efêmero, o eterno…

Numa linguagem depurada, o haicai não explica, flui.

Suas origens são muito antigas, provém do tanka, do renga, uma sequência de estrofes. O grande Bashō (1644-1694) é o mestre desta arte; de seu discípulo Issa (1763-1826):

Crisântemos florescem
junto ao monte de estrume
uma só paisagem

O haicai sempre teve 17 sílabas ou sons — 5, 7, 5 — diz o máximo em 3 linhas; não é provérbio ou “pensamento”; pode ser ironia, introspecção, humor, sempre traz um “encanto intraduzível” (conforme Afrânio Peixoto, 1919) ou, como bem definiu Paulo Franchetti, “com o mínimo obtém-se o suficiente”.

Osório Dutra (1889-1968) afirmou que a poesia do Japão era pobre e o haicai fruto desta pobreza… estariam verdes as uvas…?

Importante mesmo é saborear o haicai dos bons autores:

Borrão azul
na brancura da página
o poema
Albano Martins, 1930

Festa das flores
acompanhando a mãe
uma criança cega
Herberto Helder, 1930

As flores tantas
o outono
nem sabe a quantas
Paulo Leminski, 1983

Tem cautela
ajuda o sol
com uma vela
Millôr Fernandes

O pato, menina
é um animal
com buzina
Millôr Fernandes

Poema

Carlos Drummond de Andrade

Para uma sexta-feira, do Poeta:

O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mundo é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O mundo é grande e cabe
no breve espaço de beijar.

A chuva

Para Heloísa…

Finalmente
na madrugada
a chuva pesada!

lavou a carência
da terra rachada

levou a poeira
limpou a cumieira

entumesceu as raízes
renovou os matizes

forte e com jeito
encharca o vale
seco do peito

Copyright©2010 Maria Brockerhoff

Poema

Guilherme de Almeida

Minha melhor lembrança é esse instante no qual
Pela primeira vez me entrou pela retina
Tua silhueta provocante e fina
Como um punhal.

Depois passaste a ser unicamente aquela
Que a gente se habitua a achar apenas bela
E que é quase banal
Agora que te tenho em minhas mãos e sei
Que os teus nervos se enfeixam todos em meus dedos
E os teus sentidos são cinco brinquedos com que brinquei
Agora que não mais me és inédita
Agora compreendo que tal como te vira outrora
Nunca mais te verei…
Agora que de ti por muito que me dês
Já não podes dar a impressão que me deste
A primeira impressão que me fizeste.
Louco talvez
Tenho ciúme de quem não te conhece ainda
E cedo ou tarde, te verá, pálida e linda
Pela primeira vez!