O alpinismo, o glamour e as glórias da conquista do Everest são um mundo elitizado muito distante da realidade do gentil povo nepalês.
O Vale de Kathmandu é habitado há mais de 2500 anos. Recebeu imigrantes do Tibet, das planícies do Ganges e da Birmânia. Os nativos são, entre outros, os Newar, uma etnia culturalmente rica que floresceu entre os séculos XII e XVIII. Apesar do número reduzido — menos de 6% da população total — ainda tem grande influência econômica e política, além de conservar sua língua ancestral.
Kathmandu era rota comercial entre Índia/Tibet, permitindo à dinastia Malla investir em arte e cultura, como ainda se pode ver pelos mais de 3000 artísticos templos.
No século XV o vale foi dividido em três principados: Kathmandu, Patan/Lalitpur e Bhaktapur. Essas cidades antigas foram meticulosamente planejadas. Os detalhes urbanos guardavam significado artístico, social e religioso. Muitos símbolos definiam a casta do clan familiar. Outros eram estritamente reservados aos templos.
Em cada uma destas cidades havia — ainda hoje isto se conserva — a Durbar Square, a praça dos palácios, com os templos, as fontes, os bazares e monumentos cuidadosamente entalhados em madeira.
Naqueles bons tempos, uma “bica” jorrando água continuamente, mantido por um sistema de reaproveitamento e coleta dos lençóis subterrâneos, era assegurada a cada família.
As construções newari, de madeira e terracota emboçadas em barro, eram mais resistentes aos terremotos. Hoje, na zona rural, ainda se conserva o costume de misturar à argamassa o esterco de vaca.
A monarquia — absolutista e, mais tarde, parlamentarista — perdurou por 240 anos, quando, em 2008, o Nepal se tornou uma República Democrática Federal. Em 2001, o reino sofreu o duro golpe do massacre da família real, quando o príncipe regente assassinou os pais — o rei Birendra e a rainha Aiswarya — e todos os parentes mais próximos, suicidando-se em seguida.
Kathmandu, Patan e Bhaktapur são, ainda, os principais centros de turismo com 4 milhões de habitantes.
Hoje, a arquitetura decadente, a poeira dos séculos nos desenhos dos templos e sobrados, as ruas muito estreitas, as portas muito baixas para impedir a entrada dos maus espíritos, nos levam a uma incrível viagem a um tempo perdido.
O toque de realidade, além dos gigantescos fios elétricos embolados e dependurados por toda parte, vem das belas nepalesas arrastando saris coloridos e brilhantes pelas ruelas.
A Durbar Square de Kathmandu, onde estamos agora, é um mundo muito rico de histórias, de lutas, de arte, de música envolto em poluição com ruelas sem calçadas, cheias de pó e buracos. Vê-se um povo desnutrido, as crianças pequenas já independentes nas ruas. Às mulheres cabe o trabalho mais pesado de içar a água, de qualidade duvidosa, do poço na praça.
Os cortes de energia são frequentes e diários. Os grandes hotéis tem geradores e não sentimos nenhum desconforto. O transporte público é precário e sem rodovias o fornecimento de víveres é muito complicado e os grandes restaurantes e hotéis cultivam as próprias hortaliças. Apenas 1/4 da população tem acesso a água potável. 63% são analfabetos.
O Himalaya é uma belíssima moldura fora do alcance de quase todos. O guia comentou, entre divertido e irônico: “aqui, a sola do pé já acabou”, ao esclarecer o desinteresse dos nativos de Kathmandu por caminhadas, escaladas e esportes correlatos, pois andam a pé grandes distâncias para trabalhar e tudo o mais.
A visita ao Nepal traz-me reflexões. Aqui, a miséria escancarada em contraste com a riquíssima cultura milenar não me deixa leve nem saltitante. Pelo contrário, assalta-me um tsunami emocional: em volta de templos de ouro, de hotéis de luxo, de esculturas de uma beleza penetrante e de edificações surpreendentes as duríssimas condições de vida são profundamente perturbadoras, sendo impossível ficar indiferente.
Entretanto, ainda em fase de elaboração, a experiência muito forte é, inegavelmente, enriquecedora.