Prado — Bahia

Pé na estrada é a opção para evitar aeroportos, mas as rodovias por estas bandas desanimam. A malha rodoviária brasileira, em geral, há anos clama aos céus.

De Belo Horizonte a Prado, sul da Bahia, são aproximadamente 780km: 12 horas; alternativa de pernoite em Teófilo Otoni. As rochas escarpadas na região de Nanuque formam esculturas espetaculares.

Pedra da Boca, Nanuque/MG – Copyright©2007 Rafael Chaves, Creative Commons

Prado, às margens do rio Jucuruçu, aldeia indígena antes de 1755, cerca de 28 mil habitantes, é muito agradável, principalmente pelos cumprimentos dos amáveis pradenses e poucos turistas nesta época.

Aqui é o ponto de partida para as praias de Tororão, Paixão, Cumuruxatiba, Barra do Cahy e mais uma fileira a perder de vista.

Estivemos no Tororão, a 12km da cidade, a praia das falésias, muito boa para longas caminhadas:

Tororão, Bahia – Copyright©2021 Ana Paulo Machado

A Pousada Novo Prado, a meio quarteirão da praia, tem uma equipe atenciosa e boas acomodações. Daniel Craide, o gerente-proprietário, cultiva variadas hortaliças do outro lado da rua. É um projeto inteligente e útil, um bom exemplo.

As barracas ocuparam parte da praia do Centro, próxima à pousada; o mar tem avançado aproximando-se da orla. Há registros, em alguns pontos, de erosão e avanço do mar em ±50 metros.

O enigma deste mar infinito é renovador…

Prado, Bahia – Copyright©2021 Ana Paulo Machado

A nota dissonante da viagem foi o corte de duas fortes e saudáveis árvores na praia do Centro. Vimos outros cortes na avenida próxima. Lamentável o despreparo dos órgão municipais na preservação destes preciosos seres vivos. Tais danos irreparáveis causaram perplexidade e tristeza a outros hóspedes e moradores. A cidade está com dezenas de visitantes: os urubus! Eficientes faxineiros sinalizam a má qualidade da limpeza ambiental.

A elegante igreja de N.S. da Purificação foi instalada por alvará em 1795. O término da obra levou quase 100 anos.

Igreja Matriz de Prado, Bahia – Wikimedia Commons

O alerta na tabuleta da praia — atribuído a Frida Kahlo — nos leva mais fundo:

Donde no puedas amar, no te demores

Música, divina Música — Millôr

Copyright©2012 Wen Wei Sum (Creative Commons)

Tanto duvidaram dele, da teoria daquele jovem gênio musical, que ele resolveu provar pra si mesmo, empiricamente, a teoria de que não existem animais selvagens. Que os animais são tão ou mais sensíveis do que os seres humanos. E que são sensíveis sobretudo ao envolvimento da música, quando esta é competentemente interpretada.

Por isso, uma noite, esgueirou-se sozinho pra dentro do Jardim Zoológico da cidade e, silenciosamente, se aproximou da jaula dos orangotangos. Começou a tocar baixinho, bem suave, a sua magnífica flauta doce, ao mesmo tempo em que abria a porta da jaula. Os macacões quase que não pestanejaram. Se moveram devagarinho, fascinados, apenas pra se aproximar mais do músico e do som.

O músico continuou as volutas de sua fantasia musical enquanto abria a jaula dos leões. Os leões, também hipnotizados, foram saindo, pé ante pé, com o respeito que só têm os grandes aficionados da música. E assim a flauta continuou soando no meio da noite, mágica e sedutora, enquanto o gênio ia abrindo jaula após jaula e os animais o acompanhavam, definitivamente seduzidos, como ele previra.

Uma lua enorme, de prata e ouro, iluminava os jacarés, elefantes, cobras, onças, tudo quanto é animal de Deus ali reunido, envolvidos na sinfonia improvisada no meio das árvores. Até que o músico, sempre tocando, abriu a última jaula do último animal – um tigre.

Que, mal viu a porta aberta, saltou sobre ele, engolindo músico e música – e flauta doce de quebra. Os bichos todos deram um oh! de consternação. A onça, chocada, exprimiu o espanto e a revolta de todos:

– Mas, tigre, era um músico estupendo, uma música sublime! Por que você fez isso? E o tigre, colocando as patas em concha nas orelhas, perguntou: 
– Ahn? O quê, o quê? Fala mais alto, pô!

MORAL: OS ANIMAIS TAMBÉM TÊM DEFICIÊNCIAS HUMANAS.

Millôr Fernandes, autodidata, é um dos maiores jornalistas e chargistas da imprensa brasileira, século XX.
Carioca do Méier, Milton Viola Fernandes foi registrado como Millôr devido a uma dúvida na caligrafia. Na revista O Cruzeiro publicava sob o pseudônimo Vão Gôgo! Inteligentíssimo, como o demonstra o seu senso de humor.
A vastíssima escrita de Millôr é atemporal, como toda obra-prima.

Páscoa — a Ilha

De Santiago do Chile fomos a Valparaíso — por uma carretera ao pé da majestosa Cordilheira dos Andes — um dos portos mais importantes do Pacífico Sul. Perambulamos pelas ruas largas e limpas da cidade bem antiga; foi destruída por um terremoto em 1906, apenas o edíficio da Alfândega sobrou. Esta praça é o resultado da pitoresca mistura de estilos.

Plaza Bernardo O’Higgins, Valparaíso – Copyright©2015 Rainer Brockerhoff

Preciosas descobertas de artistas desconhecidos:

Casablanca, Chile – Copyright©2011 Rainer Brockerhoff

Embarque no MS Columbus. Depois de algumas horas uma imensidão azul… um círculo infinito… apenas o navio nesta bola ondulante. A viagem se transforma em um exercício para experimentar, tão só, o presente.

Pacífico Sul – Copyright©2011 Rainer Brockerhoff

Rapa Nui — em língua nativa — o reino dos Moais gigantes e misteriosos, à vista:

Isla de Pascua – Copyright©2011 Rainer Brockerhoff

Um holandês, em 1722, espalhou para o mundo ocidental a notícia desta ilha misteriosa. São preocupantes as causas, ainda que controversas, do colapso ecológico na ilha. Uma das teorias é a exploração exacerbada dos próprios recursos. Um poderoso alerta para nós, do lado de cá, do prejuízo irreparável da queima das florestas e poluição das águas.

Moai-vigia vê tudo na ilha, como nos contou um gentil pascoense.

Isla de Pascua – Copyright©2011 Rainer Brockerhoff

Em determinada época na lua cheia o Moai-vigia se ilumina integralmente — é o início da semeadura. Toda a ilha se involve. É consolador constatar a força destes costumes ancestrais.

Esta é a terra encantanda dos espantos e dos sustos…

Isla de Pascua – Copyright©2011 Rainer Brockerhoff
Isla de Pascua – Copyright©2011 Rainer Brockerhoff
Isla de Pascua – Copyright©2011 Rainer Brockerhoff

Do porto fomos a pé ao vilarejo — lembra Trancoso — e contamos com a amabilidade de uma carona, além de informações, pela professora que jamais saiu daqui: na sua infância, não havia água corrente nem luz nem dinheiro! Tudo era troca. Um paraíso?
Pedimos e essa professora nos ensinou a falar Iorana / obrigado. Aliás, é a palavra essencial em qualquer terra estrangeira.

O cemitério…

Isla de Pascua – Copyright©2011 Rainer Brockerhoff

Os muros todos são de pedras empilhadas, ao estilo celta. O artesanato é bem rico. Cultivam abacaxis, goiabas, abacates e hortaliças. Os professores têm uma queixa justificada: os jovens estão resistindo ao aprendizado da língua Rapa Nui. É uma inestimável perda cultural. Há 4 colégios, um para cada nível escolar; lá é servido almoço. A segurança e tranquilidade são inerentes à ilha.

Reviver boas lembranças é um bálsamo. Esta páscoa há de ser a passagem para a alforria…

2021 Delivery

Painel ©Copyright Isidoro Esposito
fotografado em Rossano, Itália 2018 – Rainer Brockerhoff

Neste mundo à mingua
de silêncio e
abarrotado de whatsapp,
os rabiscos de pedidos.
Entrega imediata:
— calma
para estar no presente
— o toque
de despertar nas fibras do peito
— a surpresa
de rever o mar como na primeira vez
— abraços
inteiros de corpos ensaboados
com cravo e canela…

PS …e a sua lista?

Copyright©2020 Maria Brockerhoff

Complexo do Bateia — Mato Grosso

Principalmente agora, nem é preciso voar… lugares surpreendentes estão na porta de casa!

Mato Grosso – Copyright©2014 Rainer Brockerhoff

Cada um se sente atraído por um tipo de lugar: muitos curtem o burburinho das noites e as luzes da cidade! Outros adoram as novidades da moda, da eletrônica, os cassinos, o mufurufo da Disney e adjacências. Alguns se aventuram pelas trilhas, florestas, montanhas e desertos. Cada qual escolhe a aventura que lhe dá na telha e, assim, todos se divertem. É o mais importante.

Este passeio é especial para os amantes de cachoeiras. É mágico. A Roncador Expedições nos leva ao Complexo do Bateia. Está a 60km de Barra do Garças, Goiás; parte asfalto, a outra melhor parte é por 4×4 e um tanto de caminhada. A natureza se esmera em curvas, rochas de arenito, cavernas e boas subidas; as flores daqui fazem inveja às pobres produzidas nas floras na cidade.

Mato Grosso – Copyright©2014 Rainer Brockerhoff

Melhor ainda não haver infras — como resumiu um guia de outras paragens — nada de lanchonetes, é mato puro: a água é a dos riachos cristalinos, potável e fresca. O lanche vai na mochila e passa-se muito bem. Aliás, nem há espaço para fome diante de tanta beleza.

Mato Grosso – Copyright©2014 Rainer Brockerhoff

As cachoeiras são como seus apelidos: Caldeirão da Bruxa, Pedra Furada, Esmeralda… e vão surgindo mais e mais! Cada uma mais fascinante e convidativa. A próxima cachoeira forma uma graciosa curva, despenca numa bacia revolta e… desaparece! Isto mesmo. Alguns metros abaixo, reaparece, toda faceira, sob uma pedra. Um capricho só.

Mato Grosso – Copyright©2014 Rainer Brockerhoff

O dia voa. A cabeça completamente esvaziada. É aqui o nirvana!

Na volta, a compra do queijo fresquinho e delicioso de D. Dalvina. Aí o abrigo dos animais:

Mato Grosso – Copyright©2014 Rainer Brockerhoff

Ao anoitecer, a mais bela das surpresas: o campo se ilumina com centenas de luzinhas no pisca-pisca dos vagalumes. A orquestra de luzes é emocionante, inigualável.
Com a alma lavada pelo banho nas águas cristalinas e fortes tudo está completo!

Páscoa — Passagem

…hoje percorremos a diversidade das passagens por este mundão sem fim!

• Mar Vermelho: um golfo do Oceano Índico entre a África e a Ásia. À esquerda, o Golfo e Canal de Suez; a peninsula do Sinai ao centro, Egito; à direita, o Golfo de Aqaba.

Sinai Peninsula, ©1991 NASA Johnson — Creative Commons

O significado da Páscoa / Passagem é bem marcante para os hebreus perseguidos pelos egípcios diante da barreira intransponível do Mar Vermelho. O mar se abriu em uma passagem segura e se fechou sobre o exército egípcio. Há muitos e variados estudos sobre essa passagem. O nome em hebraico, Yam Suph significa “pântano de juncos”; assim, a hipótese é a de que as bigas egípcias se atolaram no pântano.

• Antártida, Passagem Drake:

Cabo Hornos, Chile – Copyright©2015 Rainer Brockerhoff

A sala de entrada da Antártida; Pacífico e Atlântico se fundem sob ventos fortes e manto de gelo.

• Bahia, Península de Maraú:

Lagoa do Cassange – Copyright©2017 Rainer Brockerhoff

Na Lagoa do Cassange, a trilha do fim do túnel…

• Sérvia, Portão de Ferro:

Portão de Ferro, Danúbio – Copyright©2015 Rainer Brockerhoff

As pontes, passagens acolhedoras, são imprescindíveis nesta vida!

• Irlanda do Norte, a Carrick-a-Rede Rope Bridge:

Irlanda do Norte – Copyright©2013 Rainer Brockerhoff

Esta ponte de cordas une dois penhascos de 30m de altura. É usada pelos pescadores de salmão. …silêncio profundo só cortado pelos ventos…

• Bhutan, emblemáticos os portões de entrada ao reino da felicidade:

Bhutan – Copyright©2014 Rainer Brockerhoff

Para os indianos, o portão de entrada é a passagem para a terra prometida como os Estados Unidos o são para os mexicanos. A imigração é severamente restrita.

• Egito, Canal de Suez; liga o Mar Vermelho ao Mediterrâneo:

Canal de Suez – Copyright©2016 Rainer Brockerhoff

Este é um Mar feito à mão. Aqui, a ficção imita a vida.

Nesta viagem, a travessia, desfiladeiros, desvios, gargantas, estreitos, meandros são muitos… e significativas passagens… levam-nos a encontros, separação, alívio, fuga, plenitude, libertação…

Outono

Paris, França – Copyright©2009 Rainer Brockerhoff
A estação do equilibrista:
entre o verão e o inverno
entre o céu e o inferno.

É o ponto saboroso
entre o pecado e a lei.
Nem escravo nem rei!

Copyright©2019, 2020 Maria Brockerhoff

A Cultura Cigana — Buzescu

Um aspecto inteiramente novo na Romênia / Romania é a vida dos Roma, Romani, Romanes. Esta a designação correta, atual para os ciganos. Muitas vezes chamados gypsies, pois acreditava-se serem provenientes do Egito. O sufixo -ROM significa homem / povo. A caminho de București já há sinais do povo Roma nas vilas, praticamente abandonadas, com as construções típicas.

Romênia – Copyright©2015 Rainer Brockerhoff

Provenientes do norte da Índia, a diáspora dos romani começou há 1500 anos. Desde então têm sido marginalizados e profundamente injustiçados. Sofreram também um holocausto — Porajmos — sob o regime nazista.

Esta minoria étnica — entre 12 e 15 milhões  — apresenta, claro, diversidade de costumes, regras e língua. Contudo predominam as andanças e a tradição oral da língua Roma. A maioria se encontra na Romênia, Bulgária e República Checa. Por volta de 1860 os roma se estabeleceram aqui para trabalhar nas minas e nos campos. Reforçando a perseguição, o ditador comunista Ceaușescu forçou-os a viver em guetos, tentando suprimir uma rica cultura.

Aqui, também, uma reveladora imagem: do lado esquerdo, a moradia enquanto se constrói o palacete dos sonhos à direita.

Romênia – Copyright©2015 Rainer Brockerhoff

Contudo, a maior surpresa estava a 100km de Bucareste / București: o étnico e desconhecido vilarejo de Buzescu.

Buzescu, Romênia – Copyright©2014 Al Jazeera

Com apenas uma rua, os poucos habitantes levam anos e anos em construções rebuscadas. Fazem-se grandes e inespecíficos negócios. Aqui, também, vigora o código de honra do silêncio, tipo omertà. A preocupação com o luxo e a aparência das moradias é tão grande que a família vive em um só cômodo durante o inverno, pois não sobra 💲 para aquecer toda a casa.

Buzescu, Romênia – Copyright©2013 Dreamlands

O mercado imobiliário é paralelo: essas residências opulentas não têm valor nas transações oficiais. São negociadas apenas entre os roma. É cultural a exibição de riqueza pelas moradias, jóias e dentes de ouro. Curioso o preconceito dentro dos grupos: os pobres são menosprezados. A desigualdade é gritante. Grande o contraste entre as mansões de Buzescu e as choupanas dos camponeses e entre antigas carroças puxadas por cavalos e os Porsches e Mercedes nas garagens.

Buzescu, Romênia – Copyright©2014 Al Jazeera

Em geral, os rapazes não estudam regularmente nem frequentam universidades. São iniciados nos negócios. Preocupante é o casamento de meninas de 12 anos, sem nenhuma escolaridade ser, ainda, contratado entre as famílias.

Os festivais demonstram a riqueza cultural da música e da dança e a fartura das comidas e bebidas típicas. As melodias roma exerceram influência na música clássica e no jazz. Descendentes ilustres deste povo singular se sobressaíram — inclusive o Nobel — nas artes, teatro, ciência e literatura. No Brasil, dois presidentes: Juscelino Kubitschek e Washington Luís.

Se quiser duvidar dos próprios olhos, clique abaixo:

Alforria

Em 2014 as Erínias captaram a linguagem eloquente da foto do jovem príncipe… hoje, com o seu grito de liberdade, confirmou-se a intuição certeira do poema…

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Caiu um príncipe
no buraco fundo
da copa do mundo.
O elegante rapaz
atraiu muita gente
batedores, holofote.
Teve brilho fugaz
o nobre filhote.
Cercado de menina
de mídia cretina
certamente o pobre Harry
trocaria a própria sina
— do pé à medula —
pela alegria simples
do moleque-gandula…

Copyright©2014 Maria Brockerhoff