Preciosa — o filme!

O diretor e autora do livro formaram uma parceria de talentos. Ambos transformaram o sofrimento de suas vidas em arte e catarse! Deve ser visto.

De Philadelphia (USA), Lee Daniels teve uma infância duríssima. O violento pai policial jamais aceitou a homossexualidade do filho. Inteligente e sensível, o jovem superou inúmeros obstáculos. Tornou-se competente diretor ou produtor de outros bons filmes: A Última Ceia (2001), O Lenhador (2004), Os Matadores de Aluguel (2005), Tennessee (2008) e O Mordomo da Casa Branca (2013).

PF2500Lee Daniels sempre considerou o cinema europeu intrigante e detesta, em geral, o cinema americano. Não pensa em fazer filmes para as massas. O objetivo, para ele, é levar o espectador à reflexão. Especialmente quanto ao Preciosa (2009), revelou: “retrata o meu mundo, é uma tentativa de cicatrizar as feridas deixadas pela conduta abusiva do meu pai.

Oprah Winfrey, coprodutora, revela a aprovação cheia de entusiasmo ao exclamar, na estréia:

It was primal! Wow!

PF1500Gabourey Sidibe — a excelente atriz principal — foi escolhida entre 500 candidatas. Foi o primeiro filme e até o dia anterior era estudante de psicologia e recepcionista.

A comediante Mo’Nique, também com uma parcela de abusos na infância, interpreta muito bem a mãe, cúmplice nos tormentos familiares.

O filme foi baseado no livro Push de Ramona Lofton, nascida na Califórnia; retrata alguns traços autobiográficos e o comum na vida de muitas filhas. Ramona passou a se chamar Sapphire e mora em Nova York.

A autora Sapphire foi professora por sete anos numa escola alternativa no Harlem, tal como no filme. Essa experiência torna o filme ainda mais duro e desnuda um submundo no qual mulheres vegetam sem ao menos saber que são pessoas. Perversamente a situação é quase sempre alimentada por outras mulheres.

O filme Preciosa — irônica provocação de ser este o nome do meio da protagonista “Claireece Precious Jones” — é uma intrigante mistura de feiura, violência, redenção e esperança.

A princípio, Preciosa não conseguia formular uma frase com sujeito e verbo, nem mesmo no dialeto do Harlem. Aí, o talentoso diretor Lee Daniels segue as pegadas magistrais de Sapphire ao mostrar o lento e significativo progresso da fala de Preciosa: a fase do balbucio equivale ao não-ser; ao elaborar frases, torna-se pessoa.

É uma transformação de dentro para fora e tornou-se possível quando, através dos rudimentos da escrita, algumas meninas percebem uma fresta dentro de si mesmas. Com a ajuda imprescindível e paciente da dedicada professora — interpretada por Paula Patton — Preciosa começa a descobrir, contra todas as expectativas, forças para buscar outro caminho.

O filme escancara as relações familiares nos moldes estabelecidos desde sempre. Não há, praticamente, homens; é um universo de mulheres onde se revela a crueldade dos adultos. A exposição da comunidade do Harlem, que Sapphire conheceu bem, é o retrato da hipocrisia familiar, do mito da inata disposição materna, da ignorância absoluta dos deveres paternos.

Aplicável ao quotidiano a explicação da professora para as suas alunas:

esta escola [a armadilha familiar, dizem as Erínias] é uma porta giratória, umas conseguem sair… outras não…

Domo de Araguainha — Mato Grosso #2

O domo é uma das 5 maiores crateras do mundo. Tem 40km de diâmetro, formada pelo impacto de um meteorito há 250 milhões de anos. O nome é devido ao formato das rochas estilhaçadas. Essa cratera, profundamente erodida, é um astroblema que apresenta anéis concêntricos de colinas e vales. O estudioso Ruy Ojeda, residente em Ponte Branca, gentilmente nos falou sobre o fenômeno.

A importância dos sítios geológicos é, em geral, desconhecida da população. O primeiro passo para a preservação do Domo de Araguainha é a conscientização da população e, principalmente, dos governantes, do valor inestimável deste patrimônio histórico-científico. Os serviços de terraplanagem já danificaram muitas rochas ao longo das rodovias, conforme denunciam os estudiosos.

  • Tour Domo de Araguainha

No acesso a Araguainha — situada no núcleo do astroblema — e Ponte Branca fica mesmo caracterizado o descuido com a belíssima natureza desta região. A rodovia em obras tem muitos desvios, a poeira chega a ficar impenetrável e montes de terra, em muitos pontos, são jogados nas veredas e riachos. Aliás, em Mato Grosso, vê-se lixo em todas as partes: nas ruas, nos quintais, nas praias de areias brancas, etc.. Uma pena!

A cratera só é visível via satélite, mas o círculo de serras azuladas e contorcidas é uma bela moldura da região. Na Serra da Arnica são visíveis os movimentos ali cristalizados pelo impacto do meteorito. As gigantescas árvores de Baru — uma castanha com gosto de amendoim — as douradas árvores “escorrega-macaco”, a paisagem 360° de horizonte, nos silenciam.

  • Córrego do Barreirão

O tal do Barreirão, cheio de pedras, forma cavernas e “panelas” talhadas a compasso! Uns poços bem profundos de águas cristalinas, outros acessíveis para um bom mergulho, as quedas de águas espumantes da Cachoeira do Fuzil formam um grandioso espetáculo. Isto compensa regiamente o sobe-e-desce e os tropeços do caminho. Eduardo, o prestativo guia do domo, nos leva a deliciosas duchas… friazinhas!

  • Ponte Branca

Calçada em bloquetes hexagonais, uma avenida arborizada corta a cidadinha tranquila. A praia da turma é o ribeirão Candeeiro e suas areias brancas e águas claras.

Um trecho impressionante do Rio Araguaia contorna a cidade, com uma ponte precária de madeira — os pilares são de concreto, ufa! — por onde transitam caminhões pesados.

Toda a gente nos recebe muito bem, até tomamos, para nós, a simpaticíssima comadre de Ricardo, nosso guia no jipão. Ela nos ofereceu um frango com pequi muito gostoso sob a frondosa mangueira do quintal. Um luxo!

  • Rio Araguaia

Curtimos tudo naqueles 50km de subida e descida da imensidão azulada do Araguaia, que é todo nosso; vimos ninguém mais! Os olhos de Dimas, nosso comandante, acendem ao apontar cada pedra, cada curva, cada pássaro. Conhece palmo a palmo. É também exímio timoneiro ao contornar as pedras enormes e, principalmente, atravessar um estreito portal formado por duas grandes lascas e fortes corredeiras. Uma aventura!

Apesar de bem maltratado pela inconsequente criação de gado em suas margens, o portentoso Araguaia é um sobrevivente lutador. O rio é belíssimo, as árvores — as restantes — formam um paredão verde cheio de pássaros, os mais diversos.

No final da tarde, uma demonstração das mais surpreendentes: sobre o barco, uma grande revoada de garças brancas voltando para casa…

Este passeio — ou sonho? — no Rio Araguaia é um highlight da Roncador Expedições.

La suerte está echada

A origem da expressão, o dado seja lançado ou a sorte está lançadail dado è tratto, the die is cast — é latina: alea jacta est! Júlio César, ao atravessar o Rio Rubicão, 49 a.C., em direção a Roma, desobedecendo ao Senado, lançou este brado cheio de esperança e desespero. Queimar os navios — ordem de Hernán Cortéz — tem significado semelhante. Uma escolha corajosa, uma decisão arriscada e a impossibilidade de retorno.

LSMas, este primeiro filme, 2005, de Sebástian Borensztein — também dele Un Cuento Chino — não carrega essa dramaticidade toda! Pelo contrário, é uma incitante história. Este jovem diretor está se firmando como um bom contador de “causos”. Neste La suerte, Borensztein não dá lições, não tem a pretensão de mudar alguém; conduz o fio com muito humor e sensibilidade.

A orquestra El Arranque, desde 1996, reconhecida pelo talentos dos músicos, já fez apresentações em Hongkong, Itália, Japão, Estados Unidos e no Canecão do Rio de Janeiro. Está perfeita no tango, a alma argentina! Aquele clube é o dos nativos. Já estivemos numa milonga, sem turistas, em Buenos Aires e a atmosfera é mesmo envolvente com a linguagem corporal do tango.

Mais uma vez é interessante perceber a diferença cultural no linguajar porteño. A franqueza é quase rude, o “politicamente correto” não está na moda na Argentina. O gestual completa o diálogo, onde PQP é uma interjeição (!).

LS2Perspicaz é o desenlace da questão amorosa de Clara (Julieta Cardinali) e Guillermo (Gastón Pauls). Inicialmente o término da relação foi muito rápido… y punto! O troco foi incisivo, sem palavras, cortante… y punto. Útil para ser colocado em prática no momento oportuno. Quem vir o filme vai decifrar.

A delicadeza de Felipe (Marcelo Mazzarelo), no final, ao proporcionar ao pai a mais doce das lembranças, revela a reconciliação completa dos laços familiares. Demonstra, ainda, o tesouro de possibilidades do talento do diretor Borensztein, ele próprio um filho amoroso. A preparação persistente de Guillermo, sob a batuta do mestre dançarino, para o tango do amor é a declaração mais eloquente…

Um comentarista argentino, cujo nome se perdeu, avalia este diretor como “incapaz de compreender cinema”, além de considerá-lo “prolixo, reacionário e discursivo”. Encaixa bem aqui o saber da vovó: ah, a inveja é má conselheira!

O clube dos azarados é a melhor das caricaturas, a bazuca é daquelas soluções que a gente acaricia por muitas e muitas vezes e “la mufa” nos deixará rindo bem depois de as luzes se acenderem.

Un Cuento Chino

Um encontro fortuito numa situação incomum pode criar laços pessoais fortes e transformar vidas.

É o terceiro filme escrito e dirigido por Sebastián Borensztein, jovem e premiado cineasta argentino — o primeiro foi “La suerte está echada” — e diretor da série de TV em 69 episódios, “Tiempo final”.

Ricardo Darín (Roberto), Ignacio Huang (Jun) e Muriel Santa Ana (Mari) estão perfeitos na história baseada, conforme a legenda, em um fato real. A veracidade do tal “fato” é questionável. Há opiniões e reportagens para todos os gostos. Contudo, aquelas primeiras cenas, das quais se origina a trama, nos prendem a respiração até às últimas. Ah! a cena final…

Filmado em Buenos Aires, “Un Cuento Chino ” é um bom filme sem tramóias, sem luxo. Apresenta momentos tocantes para um espectador atento, como a imagem de Roberto indeciso diante da fechadura da porta do hóspede intruso! Mostra a desconfiança e a indiferença ao estrangeiro. O roteiro tão bem amarrado nos leva a participar, a sofrer, a dar boas risadas.

Se a mágica de um livro, de um filme, de uma obra de arte, de uma viagem está na surpresa da primeira vez, “Un Cuento Chino” é o máximo desta filosofia de deixar-se surpreender, de permitir a invasão da novidade de experienciar um livro, um filme, uma foto sem uma cartilha-desmancha-prazeres de resenhas indiscretas, resumos e orelhas.

Borensztein, com a grandeza da simplicidade, revela neste drama os mais complicados e cômicos viézes das relações interpessoais. Num lance genial, a quebra da “estante-altar” traz Roberto de volta à realidade, despertando-o do culto alienado à memória da mãe. Claro, isto é uma instigação para você, leitor, ver o filme!

Mari é uma amante alegre, generosa, não-invasiva, dá até vontade de ser homem para se enamorar dela. O chinês Jun é adorável; uma excelente interpretação. Roberto se rende ao misterioso significado da vida e se torna um mestre na definição de Guimarães Rosa:

Mestre é aquele que, de repente, aprende.