Andanças

As Erínias caem no mundo: Lisboa, Munique, Nova Delhi, Sikkim, Bhutan, Nepal, Nova Delhi, Verona, Veneza, Montenegro, Atenas, Ilhas Gregas, Lisboa.

• Muito agradável Lisboa, como sempre. Os portugueses… se pedimos informações ou puxamos papo… são prestativos e amáveis. A Fundação Gulbenkian e suas preciosidades valem a visita.

O Oceanário de Lisboa é muito bem cuidado e a gente se sente tão pequeno naquela beleza toda.

Desta vez quisemos percorrer o itinerário de Raimundo, o personagem de “A História do Cerco de Lisboa”. Este livro de José Saramago é pra ser lido mil vezes! Sim e sem exagero! Esta oitava leitura ainda traz espanto, encantamento, descobertas. Desconfio serem autobiográficos os traços do inefável romance descrito ali. Este SaraMago das palavras é um saraMágico da narrativa!

Munique é uma mistura de tradição e modernidade. Em meio a uma praça com edifícios ultra-avançados, uma escultura revela uma história do século XI. O bonde, metrô, ônibus, rigorosamente pontuais circulando entre parques com lagos e jardins, as bancas de frutas e dálias exuberantes amenizam a cidade grande.

Também os sinos em todas as praças — em geral, só para pedestres — dão um toque especial. As lojas de chás e especiarias nos transportam para lugares exóticos. O cheiro é delicioso!

O Palácio Nymphenburg, antiga residência de verão do rei da Bavária, é imenso, recortado por fontes e jardins. A bomba d’água do sistema de irrigação funcionou do século XVII até 1804, quando foi “modernizada” e até hoje está firme, a mais antiga da Europa!

Munique, desta vez, nos reservou uma agradável surpresa. Geralmente, os lugares públicos são para exposição de produtos à venda, propagandas, etc.. Aqui num espaço ao ar livre, dia e noite, em frente ao Gasteig — centro cultural sede da Orquestra Filarmônica — está um piano aberto. Ao lado, um convite: “Spiel mich” — toque-me! Assim, quem se sentir habilitado pode dar um concerto ali mesmo. Um jovem tocou muito bem para o enlevo dos passantes deliciados com o inesperado presente musical. Não é uma excelente idéia?

 

Aeroporto — o melhor lugar…

…do mundo! Aqui cessam as obrigações e as amarras.

Ouvem-se, apenas, queixas contra os aeroportos. Certamente há motivos, mas a gente consegue transformar este quadro. Aliás, tudo nesta vida, todos os acontecimentos têm a coloração, o sabor e o impacto determinados pela postura e pela disposição interior de cada um de nós. Claro, esta teoria é, quase sempre, rejeitada. Sim, é uma tarefa espinhosa reconhecer nossa parte e responsabilidade pelo modo de encarar e reagir aos fatos. Estes são alheios à vontade. A reação, não.

Bem, vamos à prática. Para curtir e transformar o aeroporto — e a viagem — há táticas comprovadas repetidamente. Apenas experimentando-as você verá ser possível executá-las e desfrutar do prazer daí decorrente.

É um método Zen. Calma, muuuita calma:

  • antecipar — sobretudo para si mesmo — a data oficial da viagem para um dia de antecedência. Isto é, avise pra todo mundo o “dia 2”, por exemplo, quando a viagem for mesmo no dia 3. Na volta, o mesmo esquema, para garantir um dia de sossego. Ao invés de “desperdício” de dois dias, esta folga será altamente compensadora;
  • no dia antecedente — “dia 2”, no caso — todos os compromissos, telefonemas, visitas, pagamentos, aniversários, presentes e outras encrencas estão resolvidos: você JÁ viajou!
  • leve isso a sério. Acredite nesta data oficial e terá o “dia 2” para:

    se levantar com calma,
    tomar lauto café com música,
    desligar telefones e internet,
    especialmente o Sr. Celular seu chefe,
    um banho comprido e namorar;

  • a malinha — quanto maior a mala, maior a insegurança do passageiro — já fechada proporciona ao corpo e mente o início de relaxamento para se incorporar à leveza Zen;
  • no dia seguinte — esta tática pode-se botar em prática sem delongas — a saída para o aeroporto será com quatro horas de antecedência. Aqui, uma regra de ouro: vá SEM carona. Recuse firmemente qualquer oferecimento. Uma chatice levar alguém ao aeroporto. Chatice ainda maior é buscar! Amigos e familiares ficarão sinceramente surpresos e agradecidos;
  • a ida ao aeroporto JÁ é a viagem! Com o exercício Zen é possível e gostoso deixar os olhos e a mente deslizarem pelas ruas, construcões, buracos, jardins, lixo, pessoas… a cidade será outra;
  • são quatro horas de antecedência, sim; pois no check-in antecipado as atendentes estão mais solícitas. Não há os aflitos empurrando um monte de malas, bolsas e mochilas sobre os outros, como se o balcão fosse desaparecer;

  • agora, com apenas uma nécessaire — ah! o luxo da leveza! — um tour, preferencialmente sozinho/a, pelos arredores. Nos aeroportos há os refúgios silenciosos e desertos de templos/capelas; alguns surpreendentes. Há exposições de bordados, artesanato, antiguidades, fotos, livrarias, jardins, bons restaurantes… etc. Com disponibilidade encontramos pessoas inteligentes e bem-humoradas. Há cantinhos escondidos, onde se pode ler sossegadamente e até meditar;
  • os lounges das companhias aéreas, também quando se chega mais cedo, são um mini-hotel com boa comida, sofás macios e banho confortável;
  • desligue-se da previsão do tempo. Agora, no aeroporto e para a viagem, a sorte está lançada: sol, chuva, vento, frio, calor estão fora de controle. É lamentação inútil, melhor aproveitar;
  • nada de entrar em lojas! Enquanto a gente fizer compras não há, realmente, viagem. Diferentemente é deixar-se perder nos bazares orientais, mercados e feiras étnicas;
  • viajar com familiares e amigos de longa data traz vantagens. Contudo, esta “juntidade” impede o inestimável benefício de viajar: a releitura à distância do habitat, da convivência e do cotidiano. Este distanciamento traz insights inesperados.
  • Duas regrinhas para minimizar arrependimentos:
    • marcar hora e lugar de reencontro, para que cada um possa ceder espaço e tempo ao outro;
    • instituir o sagrado direito de ninguém esperar ninguém. A não ser, claro, para quem não consegue ficar consigo mesmo — aí não tem remédio, “não tem jeito mesmo”, nem viagem!

As pessoas viajam. Muitas vezes, na volta nada trazem. Vão, mas a viagem não volta com elas.

Curta ou longa, uma viagem significa via de mudança. Ver, cada vez, como se fosse a primeira… incluindo o aeroporto.

Neve aliii pertinho…

…é aquele peeerto de mineiro! Mas, comparando as distâncias e a beleza intrigante das geleiras do sul das Américas, pode-se dizer: é um pulo até El Calafate, na Patagônia Argentina.

A conexão é em “Mi Buenos Aires querido”, assim é porque temos lá duas amigas muito queridas — uma porteña, a outra desejando sê-lo — que valem a visita.

Calafate é uma fruta regional da qual se fazem geléias e sorvetes; El Calafate é enfeitada por inacreditáveis roseiras de todas as cores e tamanhos.

Da cidadinha, às margens do monumental Lago Argentino saem passeios para os glaciares de Perito (“expert”) Moreno Sul, glaciares Uppsala, Seco, Spegazzini, e Perito Moreno Norte. A estrutura turística é ótima, os parques bem cuidados e limpos. Os icebergs em cristal azul, o paredão imponente de gelo são magníficos. Diante daquela imensidão coberta de gelo apertada entre montanhas majestosas, o coração dispara e tudo fica suspenso numa bolha mágica.

A única restrição nestes lugares especiais são os turistas!! Para muita gente, o objetivo é tirar muitas fotos em variadas poses e descrever ao celular, em altos brados, as trivialidades do momento. 🙁

De El Calafate, a 300km, através de uma boa e infinita estrada, chega-se a Torres del Paine, no Chile. A grande atração deste lugar é o círculo do Maciço Del Paine, cujos picos cobertos de neve trazem uma quietude que nos faz desejar permanecer aí e um silêncio cheio de estrelas que nos alerta para a insensatez de viver no caos ruidoso das cidades. Torres del Paine é um parque com um único, bonito e confortável hotel. Um lugar belíssimo com lagos de todas as cores, escaladas de todos os níveis, o belo Salto Grande de águas esverdeadas, passeios a cavalo e longas caminhadas.

Estas caminhadas apresentam desde baixa até altíssima intensidade. A subida para as Torres de granito é bem íngreme; fomos até a uma altura de 409m (metade do caminho), curtimos lá de cima o Rio del Paine e demos meia-volta, bem contentes! 🙂

A vista do Lago Grey, através do bosque, com enorme faixa de areias escuras e icebergs esculturais, é estonteante; nos primeiros instantes, a sensação é de uma miragem fascinante e envolvente…

Esta viagem, muito bem organizada pela PISA Trekking, pareceu-nos uma bela mostra da Antártida. Ao mesmo tempo nos saciou e aguçou o desejo de conhecer os gelos eternos antárticos!

Preciosa — o filme!

O diretor e autora do livro formaram uma parceria de talentos. Ambos transformaram o sofrimento de suas vidas em arte e catarse! Deve ser visto.

De Philadelphia (USA), Lee Daniels teve uma infância duríssima. O violento pai policial jamais aceitou a homossexualidade do filho. Inteligente e sensível, o jovem superou inúmeros obstáculos. Tornou-se competente diretor ou produtor de outros bons filmes: A Última Ceia (2001), O Lenhador (2004), Os Matadores de Aluguel (2005), Tennessee (2008) e O Mordomo da Casa Branca (2013).

PF2500Lee Daniels sempre considerou o cinema europeu intrigante e detesta, em geral, o cinema americano. Não pensa em fazer filmes para as massas. O objetivo, para ele, é levar o espectador à reflexão. Especialmente quanto ao Preciosa (2009), revelou: “retrata o meu mundo, é uma tentativa de cicatrizar as feridas deixadas pela conduta abusiva do meu pai.

Oprah Winfrey, coprodutora, revela a aprovação cheia de entusiasmo ao exclamar, na estréia:

It was primal! Wow!

PF1500Gabourey Sidibe — a excelente atriz principal — foi escolhida entre 500 candidatas. Foi o primeiro filme e até o dia anterior era estudante de psicologia e recepcionista.

A comediante Mo’Nique, também com uma parcela de abusos na infância, interpreta muito bem a mãe, cúmplice nos tormentos familiares.

O filme foi baseado no livro Push de Ramona Lofton, nascida na Califórnia; retrata alguns traços autobiográficos e o comum na vida de muitas filhas. Ramona passou a se chamar Sapphire e mora em Nova York.

A autora Sapphire foi professora por sete anos numa escola alternativa no Harlem, tal como no filme. Essa experiência torna o filme ainda mais duro e desnuda um submundo no qual mulheres vegetam sem ao menos saber que são pessoas. Perversamente a situação é quase sempre alimentada por outras mulheres.

O filme Preciosa — irônica provocação de ser este o nome do meio da protagonista “Claireece Precious Jones” — é uma intrigante mistura de feiura, violência, redenção e esperança.

A princípio, Preciosa não conseguia formular uma frase com sujeito e verbo, nem mesmo no dialeto do Harlem. Aí, o talentoso diretor Lee Daniels segue as pegadas magistrais de Sapphire ao mostrar o lento e significativo progresso da fala de Preciosa: a fase do balbucio equivale ao não-ser; ao elaborar frases, torna-se pessoa.

É uma transformação de dentro para fora e tornou-se possível quando, através dos rudimentos da escrita, algumas meninas percebem uma fresta dentro de si mesmas. Com a ajuda imprescindível e paciente da dedicada professora — interpretada por Paula Patton — Preciosa começa a descobrir, contra todas as expectativas, forças para buscar outro caminho.

O filme escancara as relações familiares nos moldes estabelecidos desde sempre. Não há, praticamente, homens; é um universo de mulheres onde se revela a crueldade dos adultos. A exposição da comunidade do Harlem, que Sapphire conheceu bem, é o retrato da hipocrisia familiar, do mito da inata disposição materna, da ignorância absoluta dos deveres paternos.

Aplicável ao quotidiano a explicação da professora para as suas alunas:

esta escola [a armadilha familiar, dizem as Erínias] é uma porta giratória, umas conseguem sair… outras não…

Domo de Araguainha — Mato Grosso #2

O domo é uma das 5 maiores crateras do mundo. Tem 40km de diâmetro, formada pelo impacto de um meteorito há 250 milhões de anos. O nome é devido ao formato das rochas estilhaçadas. Essa cratera, profundamente erodida, é um astroblema que apresenta anéis concêntricos de colinas e vales. O estudioso Ruy Ojeda, residente em Ponte Branca, gentilmente nos falou sobre o fenômeno.

A importância dos sítios geológicos é, em geral, desconhecida da população. O primeiro passo para a preservação do Domo de Araguainha é a conscientização da população e, principalmente, dos governantes, do valor inestimável deste patrimônio histórico-científico. Os serviços de terraplanagem já danificaram muitas rochas ao longo das rodovias, conforme denunciam os estudiosos.

  • Tour Domo de Araguainha

No acesso a Araguainha — situada no núcleo do astroblema — e Ponte Branca fica mesmo caracterizado o descuido com a belíssima natureza desta região. A rodovia em obras tem muitos desvios, a poeira chega a ficar impenetrável e montes de terra, em muitos pontos, são jogados nas veredas e riachos. Aliás, em Mato Grosso, vê-se lixo em todas as partes: nas ruas, nos quintais, nas praias de areias brancas, etc.. Uma pena!

A cratera só é visível via satélite, mas o círculo de serras azuladas e contorcidas é uma bela moldura da região. Na Serra da Arnica são visíveis os movimentos ali cristalizados pelo impacto do meteorito. As gigantescas árvores de Baru — uma castanha com gosto de amendoim — as douradas árvores “escorrega-macaco”, a paisagem 360° de horizonte, nos silenciam.

  • Córrego do Barreirão

O tal do Barreirão, cheio de pedras, forma cavernas e “panelas” talhadas a compasso! Uns poços bem profundos de águas cristalinas, outros acessíveis para um bom mergulho, as quedas de águas espumantes da Cachoeira do Fuzil formam um grandioso espetáculo. Isto compensa regiamente o sobe-e-desce e os tropeços do caminho. Eduardo, o prestativo guia do domo, nos leva a deliciosas duchas… friazinhas!

  • Ponte Branca

Calçada em bloquetes hexagonais, uma avenida arborizada corta a cidadinha tranquila. A praia da turma é o ribeirão Candeeiro e suas areias brancas e águas claras.

Um trecho impressionante do Rio Araguaia contorna a cidade, com uma ponte precária de madeira — os pilares são de concreto, ufa! — por onde transitam caminhões pesados.

Toda a gente nos recebe muito bem, até tomamos, para nós, a simpaticíssima comadre de Ricardo, nosso guia no jipão. Ela nos ofereceu um frango com pequi muito gostoso sob a frondosa mangueira do quintal. Um luxo!

  • Rio Araguaia

Curtimos tudo naqueles 50km de subida e descida da imensidão azulada do Araguaia, que é todo nosso; vimos ninguém mais! Os olhos de Dimas, nosso comandante, acendem ao apontar cada pedra, cada curva, cada pássaro. Conhece palmo a palmo. É também exímio timoneiro ao contornar as pedras enormes e, principalmente, atravessar um estreito portal formado por duas grandes lascas e fortes corredeiras. Uma aventura!

Apesar de bem maltratado pela inconsequente criação de gado em suas margens, o portentoso Araguaia é um sobrevivente lutador. O rio é belíssimo, as árvores — as restantes — formam um paredão verde cheio de pássaros, os mais diversos.

No final da tarde, uma demonstração das mais surpreendentes: sobre o barco, uma grande revoada de garças brancas voltando para casa…

Este passeio — ou sonho? — no Rio Araguaia é um highlight da Roncador Expedições.

La suerte está echada

A origem da expressão, o dado seja lançado ou a sorte está lançadail dado è tratto, the die is cast — é latina: alea jacta est! Júlio César, ao atravessar o Rio Rubicão, 49 a.C., em direção a Roma, desobedecendo ao Senado, lançou este brado cheio de esperança e desespero. Queimar os navios — ordem de Hernán Cortéz — tem significado semelhante. Uma escolha corajosa, uma decisão arriscada e a impossibilidade de retorno.

LSMas, este primeiro filme, 2005, de Sebástian Borensztein — também dele Un Cuento Chino — não carrega essa dramaticidade toda! Pelo contrário, é uma incitante história. Este jovem diretor está se firmando como um bom contador de “causos”. Neste La suerte, Borensztein não dá lições, não tem a pretensão de mudar alguém; conduz o fio com muito humor e sensibilidade.

A orquestra El Arranque, desde 1996, reconhecida pelo talentos dos músicos, já fez apresentações em Hongkong, Itália, Japão, Estados Unidos e no Canecão do Rio de Janeiro. Está perfeita no tango, a alma argentina! Aquele clube é o dos nativos. Já estivemos numa milonga, sem turistas, em Buenos Aires e a atmosfera é mesmo envolvente com a linguagem corporal do tango.

Mais uma vez é interessante perceber a diferença cultural no linguajar porteño. A franqueza é quase rude, o “politicamente correto” não está na moda na Argentina. O gestual completa o diálogo, onde PQP é uma interjeição (!).

LS2Perspicaz é o desenlace da questão amorosa de Clara (Julieta Cardinali) e Guillermo (Gastón Pauls). Inicialmente o término da relação foi muito rápido… y punto! O troco foi incisivo, sem palavras, cortante… y punto. Útil para ser colocado em prática no momento oportuno. Quem vir o filme vai decifrar.

A delicadeza de Felipe (Marcelo Mazzarelo), no final, ao proporcionar ao pai a mais doce das lembranças, revela a reconciliação completa dos laços familiares. Demonstra, ainda, o tesouro de possibilidades do talento do diretor Borensztein, ele próprio um filho amoroso. A preparação persistente de Guillermo, sob a batuta do mestre dançarino, para o tango do amor é a declaração mais eloquente…

Um comentarista argentino, cujo nome se perdeu, avalia este diretor como “incapaz de compreender cinema”, além de considerá-lo “prolixo, reacionário e discursivo”. Encaixa bem aqui o saber da vovó: ah, a inveja é má conselheira!

O clube dos azarados é a melhor das caricaturas, a bazuca é daquelas soluções que a gente acaricia por muitas e muitas vezes e “la mufa” nos deixará rindo bem depois de as luzes se acenderem.

Un Cuento Chino

Um encontro fortuito numa situação incomum pode criar laços pessoais fortes e transformar vidas.

É o terceiro filme escrito e dirigido por Sebastián Borensztein, jovem e premiado cineasta argentino — o primeiro foi “La suerte está echada” — e diretor da série de TV em 69 episódios, “Tiempo final”.

Ricardo Darín (Roberto), Ignacio Huang (Jun) e Muriel Santa Ana (Mari) estão perfeitos na história baseada, conforme a legenda, em um fato real. A veracidade do tal “fato” é questionável. Há opiniões e reportagens para todos os gostos. Contudo, aquelas primeiras cenas, das quais se origina a trama, nos prendem a respiração até às últimas. Ah! a cena final…

Filmado em Buenos Aires, “Un Cuento Chino ” é um bom filme sem tramóias, sem luxo. Apresenta momentos tocantes para um espectador atento, como a imagem de Roberto indeciso diante da fechadura da porta do hóspede intruso! Mostra a desconfiança e a indiferença ao estrangeiro. O roteiro tão bem amarrado nos leva a participar, a sofrer, a dar boas risadas.

Se a mágica de um livro, de um filme, de uma obra de arte, de uma viagem está na surpresa da primeira vez, “Un Cuento Chino” é o máximo desta filosofia de deixar-se surpreender, de permitir a invasão da novidade de experienciar um livro, um filme, uma foto sem uma cartilha-desmancha-prazeres de resenhas indiscretas, resumos e orelhas.

Borensztein, com a grandeza da simplicidade, revela neste drama os mais complicados e cômicos viézes das relações interpessoais. Num lance genial, a quebra da “estante-altar” traz Roberto de volta à realidade, despertando-o do culto alienado à memória da mãe. Claro, isto é uma instigação para você, leitor, ver o filme!

Mari é uma amante alegre, generosa, não-invasiva, dá até vontade de ser homem para se enamorar dela. O chinês Jun é adorável; uma excelente interpretação. Roberto se rende ao misterioso significado da vida e se torna um mestre na definição de Guimarães Rosa:

Mestre é aquele que, de repente, aprende.

Gente Valente

Fomos ao Texas e, descuidados, não consultamos o poderoso Sr. Clima; de costa a costa, com raras exceções, as temperaturas beiravam 104°F (40°C). Foi a primeira vez que estivemos lá no verão… e fizemos meia volta para fugir do calor escaldante.

Não comunicamos nossa volta a ninguém; assim tínhamos mais dias de férias, fomos para um hotel e experienciamos certo exílio: sim, pois sabíamos que o telefone não tocaria, não haveria visitas – um dos bons hábitos em Minas – nada de almoços coletivos, nem cafézinhos com prosa…

Descobrimos, aqui mesmo, lugares interessantes num bairro completamente desconhecido. Vimos o quanto a gente se apega à padaria, ao sacolão, à cabeleireira, à próxima esquina; como limitamos o círculo de convivência!

Deste nosso venturoso degredo pude avaliar a valentia de dois queridos amigos: M. e R. (invejando Freud 😉 ). Ambos com faccia e coragem pediram as contas, juntaram um mínimo de tralha e foram-se… cada um, absolutamente, por sua conta e risco.

M. para Buenos Aires e R. para Paris. Estabeleceram-se nestas outras plagas, conquistaram amigos e boa colocação profissional (sem QI algum!). A certeza de ter as pessoas, o trabalho, a roda na pizzaria forma uma rede reconfortante que eles deixaram para trás.

Nas nossas andanças anônimas por aqui pude avaliar que a aventura dos meus amigos pode parecer meramente romântica, contudo os desafios da cidade grande e da língua estranha exigem boa dose de autosuficiência, determinação.

Este ir e vir solitário, incluindo todas as atividades e decisões, não é pra qualquer mortal. Certamente é uma bela aventura e pode ser um meio – talvez o único – de nos virar pelo avesso e de nos fazer sair de um mundinho morno e, muitas vezes, medíocre.

Amigos M. e R., posso concluir que o impulso para uma corajosa virada só pode ser

…ou uma lança atravessada no peito ou uma esperança desvairada…