João Ubaldo Ribeiro — Diário do Farol

DF

Este polêmico livro do nosso baiano é de uma extrema e terrível lucidez.

O assunto é pesado, até assustador! Daí, talvez, a relutância de o leitor aceitar que a natureza humana é, sim, capaz de ultrapassar os limites do Bem e do Mal.

A parte final do livro é destoante e, mais uma vez, desejável que um corajoso Editor tivesse usado, ali, um misericordioso bisturi…

Contudo, o objetivo aqui é, tão somente, transcrever — ipsis litteris — um trecho que, por si só, vale o livro. Cada releitura deste texto faz o coração saltar diante da perturbadora e dura verdade:

A vida é vitoriosa não quando se tem o que se costuma ver
como bênçãos, ou seja, beleza, dinheiro, honrarias e assim por diante.
Essas coisas podem perfeitamente conviver e entrar em simbiose
com a mais completa infelicidade.
Elas não representam uma vitória por mais que seus detentores
e os que erroneamente os invejam queiram pensar assim.
A vida é vitoriosa quando se satisfaz o que de fato há em cada um de nós,
aquilo que de fato ansiamos e quase nunca nos permitem,
nem nos permitimos, reconhecer.

Cântico Negro

para Vanessa M.… já descobrindo aonde não ir

Mendocino, California - Copyright©2011 Rainer Brockerhoff
Mendocino, California – Copyright©2011 Rainer Brockerhoff

José Régio, in ‘Poemas de Deus e do Diabo’  — 1925

“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces 
Estendendo-me os braços, e seguros 
De que seria bom que eu os ouvisse 
Quando me dizem: “vem por aqui!” 
Eu olho-os com olhos lassos, 
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) 
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali… 

A minha glória é esta: 
Criar desumanidade! 
Não acompanhar ninguém. 
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade 
Com que rasguei o ventre à minha mãe 

Não, não vou por aí! Só vou por onde 
Me levam meus próprios passos… 

Se ao que busco saber nenhum de vós responde 
Por que me repetis: “vem por aqui!”? 

Prefiro escorregar nos becos lamacentos, 
Redemoinhar aos ventos, 
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, 
A ir por aí…

Se vim ao mundo, foi 
Só para desflorar florestas virgens, 
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! 
O mais que faço não vale nada. 

Como, pois sereis vós 
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem 
Para eu derrubar os meus obstáculos?…

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, 
E vós amais o que é fácil! 
Eu amo o Longe e a Miragem, 
Amo os abismos, as torrentes, os desertos… 

Ide! Tendes estradas, 
Tendes jardins, tendes canteiros, 
Tendes pátria, tendes tectos, 
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura! 
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, 
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios… 

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém. 
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; 
Mas eu, que nunca principio nem acabo, 
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! 
Ninguém me peça definições! 
Ninguém me diga: “vem por aqui”! 
A minha vida é um vendaval que se soltou. 
É uma onda que se alevantou. 
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou, 
Não sei para onde vou 
Sei que não vou por aí

Freud explica! Lapsos de linguagem

O processo dos lapsos de linguagem é interessantíssimo. Para quem os comete, o melhor é dar uma risadinha… explicar, justificar, apenas complica e constrange, pois são, indiscutivelmente, reveladores; para quem os recebe pode ser uma boa fonte de descobertas.

O livro “Psicopatologia da Vida Cotidiana” (ed. 2023 Editora Autêntica) é delicioso!

Freud narra os próprios lapsos, os de outros psicanalistas e os de clientes, além de apresentar, claro, os valiosos e lúcidos fundamentos psicanalíticos.

Ficamos aqui com a parte lúdica de alguns lapsos de linguagem, leitura e escrita:

Sigmund Freud, 1921 — Domínio público — Max Halberstadt
  • um cliente disse:
    “Não gosto de dever, especialmente a médicos. Prefiro jogar [play] já.” (ao invés de pagar [pay])
    Freud ficou de sobreaviso, mas tranquilizou-se quando o cliente pagou em dinheiro a metade da consulta, prometendo enviar um cheque da diferença. Dias depois, a carta de cobrança voltou com a indicação de destinatário desconhecido; neste momento, Freud percebeu que aquele lapso entre jogar e pagar traiu o cliente.
  • Certa ocasião, Freud repreendia uma cliente, cujo marido estava ouvindo atrás da porta; no fim do sermão, que causara visível impressão à esposa, o próprio Freud põe tudo a perder, despedindo-se dela:
    “Até logo, Senhor.”
  • Uma mulher disse à outra em frente à farmácia:
    “Se aguardar alguns movimentos, eu voltarei.” Iria comprar um purgante para o filho; queria dizer momentos.
  • Um psicanalista, ao comentar sobre um possível tratamento:
    “Poderei, com o tempo, remover todos os seus sintomas, pois é um caso durável.” Queria dizer curável.
  • Uma jovem esposa disse sobre a dieta do marido:
    “O médico disse que meu marido pode comer e beber o que eu desejar.”
  • Uma respeitável senhora exprimiu-se numa roda:
    “A mulher tem de ser bonita se quiser agradar. Os homens tem mais sorte, basta que tenham cinco membros.”
  • O psicanalista Sándor Ferenczi, quando estudante, preparara-se arduamente para recitar, pela primeira vez, um poema. Ao começar, foi interrompido por sonora gargalhada da turma: dissera o título e, ao mencionar o autor, cita o próprio nome.

Continua na próxima…

Freud explica! Mais lapsos de linguagem

Continuando

  • Um político, um tanto pão-duro, ofereceu uma festa. Bem mais tarde, em um momento, em que se supôs, fosse servida a ceia, vieram uns parcos sanduíches. Um correligionário, discursando, exclamou:
    “Neste anfitrião podemos confiar! Há-de nos garantir sempre uma sólida refeição.” Queria dizer orientação.
  • Uma senhora, certamente preocupada com os custos do tratamento:
    “Dr., não me dê grandes contas [bills], pois não posso engolí-las.” Ao invés de pílulas [pills].
  • Um pai para os filhos:
    “Não devem imitar o seu tio, um idiota. Ops! Queria dizer, patriota!”
  • Uma mulher, ansiosa por ter filhos, sempre escrevia cegonhas [storks] quando se referia a estoques [stocks].
  • Numa tradução da bíblia, publicada em Londres em 1631, no 7º mandamento, não constava a partícula não:
    Furtarás. Consta que o impressor pagou duas mil libras de multa pela omissão.
  • Numa tradução alemã, o pronome de tratamento Herr [Senhor] foi substituída por Narr [Mentecapto].
  • Ernest Jones relata a carta de um paciente:
    “O meu mal é todo devido àquela maldita esposa [wife] frígida.” Mas referia-se a uma onda [wave] de frio que lhe destruíra a colheita de algodão.
  • Um paciente enviou uma nota de desculpa por não comparecer à consulta:
    “Devido a circunstâncias previstas não pude comparecer.” Obviamente pensava em escrever imprevistas.
  • Ernest Jones deixou uma carta sobre a sua mesa durante vários dias; finalmente, colocou-a no correio. Foi-lhe devolvida por não ter colocado o endereço do destinatário. Corrigido o lapso, foi devolvida novamente porque, agora, se esquecera dos selos. Foi forçado a reconhecer que não queria enviá-la.

O mestre da psicanálise resume os lapsos de forma magnífica: “o inconsciente nunca mente.”

Gente Valente

Fomos ao Texas e, descuidados, não consultamos o poderoso Sr. Clima; de costa a costa, com raras exceções, as temperaturas beiravam 104°F (40°C). Foi a primeira vez que estivemos lá no verão… e fizemos meia volta para fugir do calor escaldante.

Não comunicamos nossa volta a ninguém; assim tínhamos mais dias de férias, fomos para um hotel e experienciamos certo exílio: sim, pois sabíamos que o celular não tocaria, não haveria visitas — um dos bons hábitos em Minas — nada de almoços coletivos, nem cafézinhos com prosa…

Descobrimos, aqui mesmo, lugares interessantes num bairro completamente desconhecido. Vimos o quanto a gente se apega à padaria, ao sacolão, à cabeleireira, à próxima esquina; como limitamos o círculo de convivência!

Deste nosso venturoso degredo pude avaliar a valentia de dois queridos amigos: M. e R. (abreviaturas invejando Freud). Ambos com faccia e coragem pediram as contas, juntaram um mínimo de tralha e foram-se… cada um, absolutamente, por sua conta e risco.

M. para Buenos Aires e R. para Paris. Estabeleceram-se nestas outras plagas, conquistaram amigos e boa colocação profissional (sem QI algum!). A certeza de ter as pessoas, o trabalho, a roda na pizzaria forma uma rede reconfortante deixada para trás.

Nas nossas andanças anônimas por aqui pude avaliar como a aventura dos meus amigos pode parecer meramente romântica, contudo os desafios da cidade grande e da língua estranha exigem boa dose de autosuficiência, determinação.

Este ir e vir solitário, incluindo todas as atividades e decisões, não é pra qualquer mortal. Certamente é uma bela aventura e pode ser um meio — talvez o único -— de nos virar pelo avesso e de nos fazer sair de um mundinho morno e, muitas vezes, medíocre.

Amigos M. e R., posso concluir que o impulso para uma corajosa virada só pode ser

…ou uma lança atravessada no peito ou uma esperança desvairada…

Alberobello — a capital dos Trulli

No sul da Itália — calcanhar da bota — a intrigante cidadinha de Alberobello com as torres de pedra. Trulli, plural de trullo, vem do grego, significa cúpula.

Alberobello, Itália – Copyright©2016 Gianfranco Vitolo

Antigamente, essas engenhosas construções de pedras calcárias, empilhadas sem argamassa, abrigavam os camponeses durante a colheita de azeitonas. Com destreza, os trulli eram desmanchados e reconstruídos rapidamente. Assim, os coletores de impostos do rei de Napoli eram enganados: deparavam com montes de pedras sobre as quais não incidia cobrança. Às costas dos fiscais os trulli eram reerguidos.

Alberobello, Itália – Copyright©2018 Rainer Brockerhoff

A região de Alberobello, a 55km de Bari, é solo fértil para a plantação de oliveiras muito elegantes… …e idade de Matusalém.

Masseria Valenti, Itália – Copyright©2018 Rainer Brockerhoff

As oliveiras — a planta macho — são em número bem menor; então, planta-se uma oliveira macho e em volta uma dezena de oliveiras fêmeas para facilitar a polinização.

A habitação em trulli remonta a mil anos. O formato em cone é apropriado para a coleta de água de chuva em cisternas. O interior se mantém fresco e agradável. O centro antigo é recortado por escadarias, ruelas e lojinhas.

Alberobello, Itália – Copyright©2016 Eduard Marmet
Alberobello, Itália – Copyright©2018 Rainer Brockerhoff

Excelentes hotéis e restaurantes modernos em estilo trulli:

Alberobello, Itália – Copyright©2016 Claudia Liechavicius

Diante destes imponderáveis trulli fica patente o poder criativo dessa gente campesina em transformar inóspitas pedras em abrigo. Alberobello é mais uma grata surpresa por estas antiquíssimas bandas italianas.

UFMG — Doação de Corpo…

..é um ato de profunda generosidade! A UFMG, há 26 anos, oferece a oportunidade para cada um de nós contribuir para a ciência e transformar a morte em algo útil e, ao mesmo tempo, simplificador. Isto mesmo!

Uma montanha de burocracia, como cartório, transporte, planos funerários, jazigo/cremação (atualmente um excelente e lucrativo negócio) se dissolve. Os custos decorrentes do falecimento ficam sob a responsabilidade da Faculdade de Medicina da UFMG com equipe alerta e bem-organizada.

Importante conhecer o VidaApósAVida. Há muitos preconceitos, enganos e desinformação sobre a doação de corpo. Novas perspectivas se apresentam àquele com disposição para ouvir, para tirar a venda dos olhos.

É até compreensível a ideia tradicional e, às vezes, até distorcida sobre sepultamento e/ou cremação. Contudo a doação de corpo, na realidade, é muito mais respeitosa quando assistimos, consternados, aos animados bate-papos em alguns velórios. Sem falar na maquiagem dos mortos; claro, uma moda importada dos americanos.

A doação de corpo traz a possibilidade magnífica para o ensino da anatomia médica, para pesquisas e para os treinamentos anatômicos e médico-cirúrgicos desenvolvidos na Faculdade de Medicina da UFMG..

Basta marcar uma entrevista pelo telefone (31)3409-9739.

É comovente e verdadeira a lápide no Cemitério da Saudade dedicada aos doadores.

É muito mais sensata e sensível a doação, pois é um desperdício descartar um corpo “que a terra há de comer”.

Ainda há outro bônus, saímos da entrevista de doação com a funda compreensão desta vida:

“o presente é um presente” — Saramago

Lagoa do Cassange, BA - Copyright©2017 Rainer Brockerhoff
Lagoa do Cassange, BA – Copyright©2017 Rainer Brockerhoff

Mineiricai

…haicai de mineiro, uai!

agressão a gays…
pura inveja no peito
rapaz, que despeito!

Copyright©2025 Maria Brockerhoff

Lecce, Itália — Copyright©2018 Rainer Brockerhoff
Lecce, Itália — Copyright©2018 Rainer Brockerhoff

Outono

Copyright©2019 Rainer Brockerhoff

De mansinho
         abril
o amor surgiu…
ninguém viu?

Copyright©2025 Maria Brockerhoff