Cântico Negro

para Vanessa M.… já descobrindo aonde não ir

Mendocino, California - Copyright©2011 Rainer Brockerhoff
Mendocino, California – Copyright©2011 Rainer Brockerhoff

José Régio, in ‘Poemas de Deus e do Diabo’  — 1925

“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces 
Estendendo-me os braços, e seguros 
De que seria bom que eu os ouvisse 
Quando me dizem: “vem por aqui!” 
Eu olho-os com olhos lassos, 
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) 
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali… 

A minha glória é esta: 
Criar desumanidade! 
Não acompanhar ninguém. 
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade 
Com que rasguei o ventre à minha mãe 

Não, não vou por aí! Só vou por onde 
Me levam meus próprios passos… 

Se ao que busco saber nenhum de vós responde 
Por que me repetis: “vem por aqui!”? 

Prefiro escorregar nos becos lamacentos, 
Redemoinhar aos ventos, 
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, 
A ir por aí…

Se vim ao mundo, foi 
Só para desflorar florestas virgens, 
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! 
O mais que faço não vale nada. 

Como, pois sereis vós 
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem 
Para eu derrubar os meus obstáculos?…

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, 
E vós amais o que é fácil! 
Eu amo o Longe e a Miragem, 
Amo os abismos, as torrentes, os desertos… 

Ide! Tendes estradas, 
Tendes jardins, tendes canteiros, 
Tendes pátria, tendes tectos, 
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura! 
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, 
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios… 

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém. 
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; 
Mas eu, que nunca principio nem acabo, 
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! 
Ninguém me peça definições! 
Ninguém me diga: “vem por aqui”! 
A minha vida é um vendaval que se soltou. 
É uma onda que se alevantou. 
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou, 
Não sei para onde vou 
Sei que não vou por aí

Freud explica! Lapsos de linguagem

O processo dos lapsos de linguagem é interessantíssimo. Para quem os comete, o melhor é dar uma risadinha… explicar, justificar, apenas complica e constrange, pois são, indiscutivelmente, reveladores; para quem os recebe pode ser uma boa fonte de descobertas.

O livro “Psicopatologia da Vida Cotidiana” (ed. 2023 Editora Autêntica) é delicioso!

Freud narra os próprios lapsos, os de outros psicanalistas e os de clientes, além de apresentar, claro, os valiosos e lúcidos fundamentos psicanalíticos.

Ficamos aqui com a parte lúdica de alguns lapsos de linguagem, leitura e escrita:

Sigmund Freud, 1921 — Domínio público — Max Halberstadt
  • um cliente disse:
    “Não gosto de dever, especialmente a médicos. Prefiro jogar [play] já.” (ao invés de pagar [pay])
    Freud ficou de sobreaviso, mas tranquilizou-se quando o cliente pagou em dinheiro a metade da consulta, prometendo enviar um cheque da diferença. Dias depois, a carta de cobrança voltou com a indicação de destinatário desconhecido; neste momento, Freud percebeu que aquele lapso entre jogar e pagar traiu o cliente.
  • Certa ocasião, Freud repreendia uma cliente, cujo marido estava ouvindo atrás da porta; no fim do sermão, que causara visível impressão à esposa, o próprio Freud põe tudo a perder, despedindo-se dela:
    “Até logo, Senhor.”
  • Uma mulher disse à outra em frente à farmácia:
    “Se aguardar alguns movimentos, eu voltarei.” Iria comprar um purgante para o filho; queria dizer momentos.
  • Um psicanalista, ao comentar sobre um possível tratamento:
    “Poderei, com o tempo, remover todos os seus sintomas, pois é um caso durável.” Queria dizer curável.
  • Uma jovem esposa disse sobre a dieta do marido:
    “O médico disse que meu marido pode comer e beber o que eu desejar.”
  • Uma respeitável senhora exprimiu-se numa roda:
    “A mulher tem de ser bonita se quiser agradar. Os homens tem mais sorte, basta que tenham cinco membros.”
  • O psicanalista Sándor Ferenczi, quando estudante, preparara-se arduamente para recitar, pela primeira vez, um poema. Ao começar, foi interrompido por sonora gargalhada da turma: dissera o título e, ao mencionar o autor, cita o próprio nome.

Continua na próxima…

Freud explica! Mais lapsos de linguagem

Continuando

  • Um político, um tanto pão-duro, ofereceu uma festa. Bem mais tarde, em um momento, em que se supôs, fosse servida a ceia, vieram uns parcos sanduíches. Um correligionário, discursando, exclamou:
    “Neste anfitrião podemos confiar! Há-de nos garantir sempre uma sólida refeição.” Queria dizer orientação.
  • Uma senhora, certamente preocupada com os custos do tratamento:
    “Dr., não me dê grandes contas [bills], pois não posso engolí-las.” Ao invés de pílulas [pills].
  • Um pai para os filhos:
    “Não devem imitar o seu tio, um idiota. Ops! Queria dizer, patriota!”
  • Uma mulher, ansiosa por ter filhos, sempre escrevia cegonhas [storks] quando se referia a estoques [stocks].
  • Numa tradução da bíblia, publicada em Londres em 1631, no 7º mandamento, não constava a partícula não:
    Furtarás. Consta que o impressor pagou duas mil libras de multa pela omissão.
  • Numa tradução alemã, o pronome de tratamento Herr [Senhor] foi substituída por Narr [Mentecapto].
  • Ernest Jones relata a carta de um paciente:
    “O meu mal é todo devido àquela maldita esposa [wife] frígida.” Mas referia-se a uma onda [wave] de frio que lhe destruíra a colheita de algodão.
  • Um paciente enviou uma nota de desculpa por não comparecer à consulta:
    “Devido a circunstâncias previstas não pude comparecer.” Obviamente pensava em escrever imprevistas.
  • Ernest Jones deixou uma carta sobre a sua mesa durante vários dias; finalmente, colocou-a no correio. Foi-lhe devolvida por não ter colocado o endereço do destinatário. Corrigido o lapso, foi devolvida novamente porque, agora, se esquecera dos selos. Foi forçado a reconhecer que não queria enviá-la.

O mestre da psicanálise resume os lapsos de forma magnífica: “o inconsciente nunca mente.”

Gente Valente

Fomos ao Texas e, descuidados, não consultamos o poderoso Sr. Clima; de costa a costa, com raras exceções, as temperaturas beiravam 104°F (40°C). Foi a primeira vez que estivemos lá no verão… e fizemos meia volta para fugir do calor escaldante.

Não comunicamos nossa volta a ninguém; assim tínhamos mais dias de férias, fomos para um hotel e experienciamos certo exílio: sim, pois sabíamos que o celular não tocaria, não haveria visitas — um dos bons hábitos em Minas — nada de almoços coletivos, nem cafézinhos com prosa…

Descobrimos, aqui mesmo, lugares interessantes num bairro completamente desconhecido. Vimos o quanto a gente se apega à padaria, ao sacolão, à cabeleireira, à próxima esquina; como limitamos o círculo de convivência!

Deste nosso venturoso degredo pude avaliar a valentia de dois queridos amigos: M. e R. (abreviaturas invejando Freud). Ambos com faccia e coragem pediram as contas, juntaram um mínimo de tralha e foram-se… cada um, absolutamente, por sua conta e risco.

M. para Buenos Aires e R. para Paris. Estabeleceram-se nestas outras plagas, conquistaram amigos e boa colocação profissional (sem QI algum!). A certeza de ter as pessoas, o trabalho, a roda na pizzaria forma uma rede reconfortante deixada para trás.

Nas nossas andanças anônimas por aqui pude avaliar como a aventura dos meus amigos pode parecer meramente romântica, contudo os desafios da cidade grande e da língua estranha exigem boa dose de autosuficiência, determinação.

Este ir e vir solitário, incluindo todas as atividades e decisões, não é pra qualquer mortal. Certamente é uma bela aventura e pode ser um meio — talvez o único -— de nos virar pelo avesso e de nos fazer sair de um mundinho morno e, muitas vezes, medíocre.

Amigos M. e R., posso concluir que o impulso para uma corajosa virada só pode ser

…ou uma lança atravessada no peito ou uma esperança desvairada…

Alberobello — a capital dos Trulli

No sul da Itália — calcanhar da bota — a intrigante cidadinha de Alberobello com as torres de pedra. Trulli, plural de trullo, vem do grego, significa cúpula.

Alberobello, Itália – Copyright©2016 Gianfranco Vitolo

Antigamente, essas engenhosas construções de pedras calcárias, empilhadas sem argamassa, abrigavam os camponeses durante a colheita de azeitonas. Com destreza, os trulli eram desmanchados e reconstruídos rapidamente. Assim, os coletores de impostos do rei de Napoli eram enganados: deparavam com montes de pedras sobre as quais não incidia cobrança. Às costas dos fiscais os trulli eram reerguidos.

Alberobello, Itália – Copyright©2018 Rainer Brockerhoff

A região de Alberobello, a 55km de Bari, é solo fértil para a plantação de oliveiras muito elegantes… …e idade de Matusalém.

Masseria Valenti, Itália – Copyright©2018 Rainer Brockerhoff

As oliveiras — a planta macho — são em número bem menor; então, planta-se uma oliveira macho e em volta uma dezena de oliveiras fêmeas para facilitar a polinização.

A habitação em trulli remonta a mil anos. O formato em cone é apropriado para a coleta de água de chuva em cisternas. O interior se mantém fresco e agradável. O centro antigo é recortado por escadarias, ruelas e lojinhas.

Alberobello, Itália – Copyright©2016 Eduard Marmet
Alberobello, Itália – Copyright©2018 Rainer Brockerhoff

Excelentes hotéis e restaurantes modernos em estilo trulli:

Alberobello, Itália – Copyright©2016 Claudia Liechavicius

Diante destes imponderáveis trulli fica patente o poder criativo dessa gente campesina em transformar inóspitas pedras em abrigo. Alberobello é mais uma grata surpresa por estas antiquíssimas bandas italianas.

UFMG — Doação de Corpo…

..é um ato de profunda generosidade! A UFMG, há 26 anos, oferece a oportunidade para cada um de nós contribuir para a ciência e transformar a morte em algo útil e, ao mesmo tempo, simplificador. Isto mesmo!

Uma montanha de burocracia, como cartório, transporte, planos funerários, jazigo/cremação (atualmente um excelente e lucrativo negócio) se dissolve. Os custos decorrentes do falecimento ficam sob a responsabilidade da Faculdade de Medicina da UFMG com equipe alerta e bem-organizada.

Importante conhecer o VidaApósAVida. Há muitos preconceitos, enganos e desinformação sobre a doação de corpo. Novas perspectivas se apresentam àquele com disposição para ouvir, para tirar a venda dos olhos.

É até compreensível a ideia tradicional e, às vezes, até distorcida sobre sepultamento e/ou cremação. Contudo a doação de corpo, na realidade, é muito mais respeitosa quando assistimos, consternados, aos animados bate-papos em alguns velórios. Sem falar na maquiagem dos mortos; claro, uma moda importada dos americanos.

A doação de corpo traz a possibilidade magnífica para o ensino da anatomia médica, para pesquisas e para os treinamentos anatômicos e médico-cirúrgicos desenvolvidos na Faculdade de Medicina da UFMG..

Basta marcar uma entrevista pelo telefone (31)3409-9739.

É comovente e verdadeira a lápide no Cemitério da Saudade dedicada aos doadores.

É muito mais sensata e sensível a doação, pois é um desperdício descartar um corpo “que a terra há de comer”.

Ainda há outro bônus, saímos da entrevista de doação com a funda compreensão desta vida:

“o presente é um presente” — Saramago

Lagoa do Cassange, BA - Copyright©2017 Rainer Brockerhoff
Lagoa do Cassange, BA – Copyright©2017 Rainer Brockerhoff

Mineiricai

…haicai de mineiro, uai!

agressão a gays…
pura inveja no peito
rapaz, que despeito!

Copyright©2025 Maria Brockerhoff

Lecce, Itália — Copyright©2018 Rainer Brockerhoff
Lecce, Itália — Copyright©2018 Rainer Brockerhoff

Outono

Copyright©2019 Rainer Brockerhoff

De mansinho
         abril
o amor surgiu…
ninguém viu?

Copyright©2025 Maria Brockerhoff

2025

Copyright©2020 Rainer Brockerhoff
Copyright©2020 Rainer Brockerhoff

Assim como as páginas
de um livro
o tempo nos aguarda
cheio de mistérios

As páginas do tempo disponíveis
para os desejos
à espera de impulsos da vontade
da ousadia de transformar
da capacidade de ultrapassar

Estas páginas
assim como todos os dias
serão preenchidos com
seiva suor lágrimas

Cada um de nós usará
a tinta das veias
para colorir umas e outros