Everest ou Disneyworld?

Centenas de pessoas estão nesta fila de espera, por horas, para dar uma olhadinha no topo do Everest, Himalaya — Nepal. Quarta-feira, 22 de maio, três pessoas morreram.

Copyright©2019 Nimsdai / Nirmal Purja / Project Possible

A escalada tornou-se um negócio cada vez mais lucrativo desde 1953, quando o sherpa Tenzing Norgay e o neozelandês Edmund Hillary, pela primeira vez, conquistaram o intocável pico. A permissão de escalada custa US$11 mil. Para esta estação já foram concedidas, pelo Nepal, 381 licenças somente para alpinistas, sem contar 140 licenças para a escalada pelo flanco tibetano. Acrescentando-se os guias, mais de mil pessoas enfrentam este congestionamento no Hillary Step.

No Nepal, o alpinismo, o glamour e as glórias da conquista do Everest são um mundo elitizado muito distante da realidade do gentil povo nepalês. O Himalaya é uma belíssima moldura fora do alcance de quase todos.

Himalaya – Copyright©2014 Rainer Brockerhoff

Em Kathmandu, o guia comentou, entre divertido e irônico: “aqui, a sola do pé já acabou”, ao esclarecer o desinteresse dos nativos de Kathmandu por escaladas; andam a pé grandes distâncias para trabalhar e tudo o mais.

Além do pesado gargalo na proximidade do cume, um outro desatino neste caminho é o acúmulo de lixo: em abril, foram retiradas 11 toneladas — uma pequena fração do remanescente. Curiosamente, alguns turistas tentam simular a chegada ao cume para receber o certificado, na situação embaraçosa de um casal de indianos em 2018, alterando fotos.

No Bhutan não é permitido escalar as montanhas, a morada dos deuses e, por isso, sagradas.

Punakha Dzong, Bhutan – Copyright©2014 Rainer Brockerhoff

Neste reino da felicidade, poluir as águas ou cortar florestas atrai doenças e a ira das divindades. Invejável sabedoria!

Dwarika’s Hotel — Kathmandu

Este hotel 5 estrelas é um elegante conjunto formado por uma antiga vila nepalesa, um museu cercado de jardins e um repositório arquitetônico com todas as amenidades e conforto modernos.

P1120094Ambica, a mulher do fundador Dwarika Das Shrestha, desempenhou um papel fundamental na realização dos sonhos do marido. Visionária, muito à frente do seu tempo, quando as mulheres eram ainda mais desvalorizadas e submetidas às ordens rigorosas, às vezes cruéis, da sogra e dos parentes machistas.

Dwarika também sempre teve idéias avançadas. Na década de 40, conhecia os benefícios e praticava vigorosos exercícios físicos, já escandalizando o pessoal com uma invejável barriga-tanquinho, além de ser favorável à educação formal de mulheres. Isto enfurecia os familiares e amigos conservadores. A filosofia de Dwarika era revolucionária: se a mãe estiver bem, se tiver boa saúde e educação, as crianças crescerão bem.

P1120136Interessante como, sob as crenças, as lendas, as superstições, os costumes, o hinduísmo avilta, hoje ainda, a condição feminina. O próprio Dwarika convenceu Ambica que a solução seria saírem do clã familiar. A gota d’água foi uma “escandalosa” volta de moto por Kathmandu, com Ambica na garupa.

P1120116O jovem casal partiu para vida e carreiras novas. Ambica começou a lecionar inglês — um deus-nos-acuda! — e Dwarika abriu a primeira agência de turismo, no Nepal, para peregrinos ao Pashupatinath. Compraram um terreno, onde sobre os alicerces antigos levantaram uma casa nova. Dwarika tinha um conceito diferente sobre a preservação da cultura e dos costumes nepaleses através da conservação do patrimônio arquitetônico e da história entalhada nos pórticos pelos antigos mestres Newari.

P1120097O insight se deu quando Dwarika, ao passar por umas ruínas, viu os marceneiros serrando peças ricamente entalhadas. Os marceneiros explicavam que tais entalhes só serviam para queimar, aquecendo-os no inverno. Diante dos marceneiros atônitos, propôs a troca da madeira velha por madeira nova. A partir de então, Dwarika vasculhava demolições e acumulava tudo. Daí nasceu a idéia de montar um empreendimento comercial: fundaram o hotel Dwarika’s “meramente como veículo para financiar o sonho”.

P1120106A construção do hotel levou 40 anos. Dwarika morreu em 1992, um ano antes de completar a obra. A esposa Ambica, a filha e o neto continuam a gerir o precioso legado. Hoje, o valor da diária das suítes de luxo é de, até, US$1500. Ambica mantém e dirige uma associação que incentiva mulheres a se tornarem independentes e empreendedoras.

P1120119Cá dentro do Dwarika’s, o caos de Kathmandu se transforma em oásis. Dá pra dormir à beira da piscina, que é uma reminiscência dos banhos reais do Séc. XII apreciados pela dinastia Malla.

P1120110A conscientização do valor da preservação feita pelo casal foi tão importante que se estendeu para a conservação das tradicionais cidades Patan e Bhaktapur.

O Ritual da Cremação — Kathmandu

Indefinível a sensação diante da pira incandescente… o corpo é consumido pouco a pouco.

O Templo de Pashupatinath está a 10km do centro de Kathmandu em um parque muito grande cortado pelo rio Bagmati, cujas águas parecem uma massa pesada, escura e lenta. Aqui a divindade Shiva teria repousado e “Pashupati” significa “o senhor e protetor de todos os seres vivos”. À entrada é cobrado, justificadamente, um ingresso dos turistas e bancas de todo o tipo de artesanato tem a oportunidade de bons negócios em um dos países mais pobres do mundo.

Pashupati tem centenas de templos, santuários e edificações, tudo muito antigo. Entre estas, visitamos um asilo onde os velhos sem família são levados para aguardar a morte e a cremação ali bem pertinho.

No alto, o templo principal de Pashupatinath, com a cúpula em ouro, é um dos maiores do Nepal.

No interior, vimos de longe o gigantesco boi Nandi, que teria sido a montaria de Shiva. Só é permitida a entrada de hinduístas.

É inusitado, no portal do templo, um modernoso display com informações em nepalês e inglês.

A plataforma de cremação tem degraus até o rio, onde se lavam os pés do morto e as famílias se aspergem. Os ricos são cremados na parte superior do rio. Há algum tempo, a pira dos ricos era de sândalo, uma madeira perfumada; como está quase extinta, hoje coloca-se apenas uma pequena tora.

Os sadhus — uns homens seminus, cabelos aos metros, faces coloridas e corpos cobertos de cinzas — estão em toda parte e sobrevivem posando para os turistas. Dizem as boas línguas que são “sadhus para turista”; os verdadeiros, sim existem, estão em cavernas distantes em jejum e meditação.

A gente assiste, esbugalhados, a preparação da pira, o ritual de envolver o morto em lençóis brancos e laranja. Na boca se coloca um pavio de cânfora e manteiga, onde se acende a chama, pois pela boca começa e termina a vida. Significativo é o “leito” formado sobre as toras para aconchegar o corpo coberto de palha; não se usa líquido inflamável.

Toda a cerimônia é envolta numa atmosfera de respeito e silêncio.
O restante das cinzas e todos os resíduos são lançados ao rio. Ali, crianças e mulheres recolhem as sobras de madeira e possíveis moedas, anéis, brincos no rescaldo.

Mais abaixo no rio, custei a acreditar ao ver — e conferir! — duas mulheres recolherem os restos de um tronco humano.

Kathmandu — Nepal

O alpinismo, o glamour e as glórias da conquista do Everest são um mundo elitizado muito distante da realidade do gentil povo nepalês.

O Vale de Kathmandu é habitado há mais de 2500 anos. Recebeu imigrantes do Tibet, das planícies do Ganges e da Birmânia. Os nativos são, entre outros, os Newar, uma etnia culturalmente rica que floresceu entre os séculos XII e XVIII. Apesar do número reduzido — menos de 6% da população total — ainda tem grande influência econômica e política, além de conservar sua língua ancestral.

Kathmandu era rota comercial entre Índia/Tibet, permitindo à dinastia Malla investir em arte e cultura, como ainda se pode ver pelos mais de 3000 artísticos templos.

No século XV o vale foi dividido em três principados: Kathmandu, Patan/Lalitpur e Bhaktapur. Essas cidades antigas foram meticulosamente planejadas. Os detalhes urbanos guardavam significado artístico, social e religioso. Muitos símbolos definiam a casta do clan familiar. Outros eram estritamente reservados aos templos.

Em cada uma destas cidades havia — ainda hoje isto se conserva — a Durbar Square, a praça dos palácios, com os templos, as fontes, os bazares e monumentos cuidadosamente entalhados em madeira.

Naqueles bons tempos, uma “bica” jorrando água continuamente, mantido por um sistema de reaproveitamento e coleta dos lençóis subterrâneos, era assegurada a cada família.

As construções newari, de madeira e terracota emboçadas em barro, eram mais resistentes aos terremotos. Hoje, na zona rural, ainda se conserva o costume de misturar à argamassa o esterco de vaca.

A monarquia — absolutista e, mais tarde, parlamentarista — perdurou por 240 anos, quando, em 2008, o Nepal se tornou uma República Democrática Federal. Em 2001, o reino sofreu o duro golpe do massacre da família real, quando o príncipe regente assassinou os pais — o rei Birendra e a rainha Aiswarya — e todos os parentes mais próximos, suicidando-se em seguida.

Kathmandu, Patan e Bhaktapur são, ainda, os principais centros de turismo com 4 milhões de habitantes.
Hoje, a arquitetura decadente, a poeira dos séculos nos desenhos dos templos e sobrados, as ruas muito estreitas, as portas muito baixas para impedir a entrada dos maus espíritos, nos levam a uma incrível viagem a um tempo perdido.
O toque de realidade, além dos gigantescos fios elétricos embolados e dependurados por toda parte, vem das belas nepalesas arrastando saris coloridos e brilhantes pelas ruelas.

A Durbar Square de Kathmandu, onde estamos agora, é um mundo muito rico de histórias, de lutas, de arte, de música envolto em poluição com ruelas sem calçadas, cheias de pó e buracos. Vê-se um povo desnutrido, as crianças pequenas já independentes nas ruas. Às mulheres cabe o trabalho mais pesado de içar a água, de qualidade duvidosa, do poço na praça.

Os cortes de energia são frequentes e diários. Os grandes hotéis tem geradores e não sentimos nenhum desconforto. O transporte público é precário e sem rodovias o fornecimento de víveres é muito complicado e os grandes restaurantes e hotéis cultivam as próprias hortaliças. Apenas 1/4 da população tem acesso a água potável. 63% são analfabetos.

O Himalaya é uma belíssima moldura fora do alcance de quase todos. O guia comentou, entre divertido e irônico: “aqui, a sola do pé já acabou”, ao esclarecer o desinteresse dos nativos de Kathmandu por caminhadas, escaladas e esportes correlatos, pois andam a pé grandes distâncias para trabalhar e tudo o mais.

A visita ao Nepal traz-me reflexões. Aqui, a miséria escancarada em contraste com a riquíssima cultura milenar não me deixa leve nem saltitante. Pelo contrário, assalta-me um tsunami emocional: em volta de templos de ouro, de hotéis de luxo, de esculturas de uma beleza penetrante e de edificações surpreendentes as duríssimas condições de vida são profundamente perturbadoras, sendo impossível ficar indiferente.
Entretanto, ainda em fase de elaboração, a experiência muito forte é, inegavelmente, enriquecedora.